Quatro filmes de ficção que chamam a atenção pela capacidade de ecoar a vida real sem maiores artifícios – e ainda assim emocionam.
Nada de filmes levinhos
Enquanto entusiasta da ficção como catalisadora de emoções intensas – aquelas que, por sorte ou juízo, não costumamos experimentar em nossa rotina diária –, não sou o tipo de pessoa que, ao final de uma semana extasiante, procura um filme levinho para ver e, na companhia de uma garrafa de vinho, relaxar. O que me satisfaz, em geral, é ver representados na tela o submundo da condição humana, o lado extremo da vida, aquilo que nos faz prender a respiração e aguardar a catarse final para, só então, soltar o ar; o impensável, enfim, aos olhos de quem, da porta para fora de uma sala de cinema, vive habituado à monotonia.
Há filmes, porém, que teimam em abalar minhas já não tão sólidas convicções para extrair arrebatamento de onde eu menos esperava, tendo como força motriz um elemento que, de tão presente em tudo o que nos rodeia, parece desgastado e fadado ao desprezo por parte das criações artísticas: a vida real.
A fim de me redimir em relação a esta subestimada forma de fazer cinema, elaborei uma pequena lista de filmes da safra recente que, a meu ver, foram bem-sucedidos na proposta de suscitar os mais genuínos sentimentos ancorados apenas na simplicidade do viver, fugindo à grandiloquência que se espera das grandes obras e dando valor à banalidade corriqueira que permeia a existência de cada um de nós – cuja beleza, aliás, temos mania de esquecer.
Driveways (2019, Andrew Ahn)
Andrew Ahn faz aqui uma ode ao cotidiano e às coisas simples da vida, construindo uma história tão comum que possibilita que se dê atenção máxima aos detalhes da narrativa, servindo ao propósito de aquecer corações a partir de apenas um gesto ou olhar.
O enredo, em que um menino de oito anos muda-se com a mãe para uma nova cidade e lá constrói uma relação de companheirismo com seu vizinho idoso, tinha tudo para esbarrar nos clichês melodramáticos do gênero “amizades incomuns”, mas as escolhas do roteiro levam a história a rumos mais promissores, fugindo de um ideal de fofura forçada que parece dar a tônica em muitos casos semelhantes.
Há fofura, sim, mas a veracidade impressa pelas atuações dos três protagonistas, e, principalmente, pela naturalidade dos diálogos e das situações do dia a dia que lhes são impostas – cuja trivialidade, aliás, encobre camadas mais profundas de sentimentos que, ao menos no meu caso, só foram acessadas em um momento posterior, já com o filme guardado dentro de mim – faz com que o efeito do real bata mais forte, e a gente lembre que a vida tem seus percalços, mas ainda assim é bonita demais.
Amanda (2018, Mikhaël Hers)
Há, aqui, um acontecimento chocante e grandioso, e a sua inserção no centro da narrativa seria tentadora para qualquer cineasta menos perspicaz. Mas não é o que ocorre em “Amanda”, que enfoca o relacionamento entre a menina que dá nome ao longa e seu tio, após este se ver na abrupta posição de cuidador da sobrinha diante do evento (aquele, aterrador, que seria o norte de uma narrativa pouco inspirada) que vitimou sua irmã.
O mais impressionante é que, a despeito do caráter único da tragédia que tangencia esta história, o que vemos na tela é o desenvolvimento de laços de ternura universais, os quais poderiam estar presentes tanto na zona urbana de Paris, onde o filme se passa, quanto nas comunidades mais culturalmente distantes de uma metrópole de que se tem registro. Assim, o filme deixa claro que, por piores que sejam os cenários externos que o destino nos proporciona, o que prevalece, acima de qualquer outra coisa, é o elemento humano – além de um incansável otimismo que, ao menos na tese de Hers, precisa ser-lhe correlato para que se encontre alguma graça na (sobre)vivência.
Mais uma chance (2018, Tamara Jenkins)
Desafio você, leitor, a citar uma dupla de atores que emane mais a energia “casal norte-americano de classe média enfrentando problemas condizentes com sua condição social” do que Kathryn Hahn e Paul Giamatti. Eu não consegui pensar em nenhuma, e por isso credito o resultado satisfatório desta comédia despretensiosa sobre infertilidade à escolha certeira do elenco, que, além de imprimir verossimilhança em cada cena, faz tudo com tanto naturalismo que, ao final da sessão, o espectador se sente próximo dos personagens a ponto de querer encontrá-los em uma mesa de bar para saber as novidades de sua saga em busca da paternidade.
Essa sensação de intimidade, aliás, parece ser um dos grandes motes do filme, cujo título em inglês é Private Life, que em português quer dizer “vida privada”: aquilo que os personagens nos permitem testemunhar por cerca de duas horas, deixando-nos à vontade para bisbilhotar por entre os corredores de sua casa, as vídeo-chamadas com possíveis candidatas a barriga de aluguel e toda a sorte de salas de espera hospitalares, enquanto o sonho que os move é perseguido. Ao final, ainda ganhamos uma lição de bônus: o cru da vida também pode ser engraçado.
Andando (2008, Hirokazu Kore-eda)
Kore-eda é um mestre do gênero de filmes “dramas familiares comoventes”, e o que surpreende na obra do cineasta é que ele parece não lhe impor um peso desnecessário para extrair emoção do público, mas aposta tão-somente na singeleza de suas histórias, as quais costumam estar recheadas de personagens com feridas latentes, sempre à beira de saltarem à superfície.
“Andando” retrata um jantar de família, organizado pelos patriarcas a fim de homenagear o filho mais velho, morto anos antes em decorrência de um afogamento. Como esperado, as relações conflituosas que envolvem os parentes vão se desvelando ao longo do filme, mas nunca no sentido do extravasamento ou da verborragia, e sim com muita contenção e elegância.
A sutileza com que o diretor rege o desenvolvimento da trama proporciona a constante sensação de iminência em relação a um clímax que, nunca satisfeito, acaba se diluindo entre os acontecimentos e diálogos com o passar das horas. Tal percepção, aliás, pode ser familiar a muitos espectadores: não vivemos na constante espera de algo relevante que justifique nossa existência?
Como a vida, Kore-eda nos prega uma peça e cumpre com louvor o que parece ser sua missão: abalar a crença de que as emoções fortes só podem ser sentidas se vasculharmos o underground de nossa natureza, e não através do que cremos banal e inofensivo, qual um encontro familiar proporcionado por dois velhinhos numa bela casa no interior do Japão.
Créditos Homo Literatus
Esse texto foi escrito por Bibiana Lucas para nossa coluna Cinemateca HL. A revisão é de Raphael Alves e a edição final de Nicole Ayres, editora-assistente do Homo Literatus. Bons filmes!