Levantar cedo já tinha virado rotina e eu não me abalava, sei que se estivesse em Brasília as coisas não seriam assim. Lá eu não era uma garota comum, com coisas comuns a fazer. Lá eu era a filha do senador mais votado, que tinha uma mãe certinha e um pai sério e carismático.
Tudo bem eu descobri que minha mãe é uma moleca e que meu pai não tem nada de sério…
Então quando acordei naquela manhã tudo que eu queria era voltar a falar com a Dona Carmem. E não era porque eu sentia pena dela, eu não pensava mais assim. Tinha me conformado com o fato de estar muito doente, e queria passar mais tempo com uma senhora tão gente fina.
Minha mãe me levou ao hospital e encontrei uma senhora alegre sentada na cama de seu antigo quarto. Estava me esperando.
– Já acordada? Vejo que está tão curiosa quanto eu… (falei soltando minha bolsa em um canto).
– Acho que sim… Não vejo à hora de saber o que aconteceu… (parecia uma garotinha).
– Saberemos hoje…
Peguei o livro da mesinha de cabeceira, sentei-me próxima a ela e continuei do ponto em que havíamos parado.
Ele voltava doente a sua terra, estava envergonhado pela derrota, e sofria por ter de ficar fora do mundo da cavalaria…
Eu estava curiosa, meus olhos corriam pelas palavras que saiam aos tropeços da minha boca. O final era mais triste do que eu tinha imaginado, mas eu não queria parar de ler, devia isto a minha ouvinte.
Li as últimas palavras, sobre loucura a lucidez, vida e morte… Olhei para o lado dona Carmem parecia dormir, levantei-me para tomar um gole de água, eu ainda chorava, e demorei a perceber que não escutava a sua respiração.
Apertei o botão para chamar alguém, e em poucos minutos o Ricardo estava ali. Ele a examinou com calma, mas parecia nervoso. Um outro médico (mais velho) entrou e a examinou também.
– Temos que avisar a família… (o outro falou em tom mais baixo).
– Eu aviso… (o Ricardo se adiantou).
Parecia que não tinham percebido minha presença, e eu não fazia muita força para que percebessem isso. Eu escutava as palavras sem processá-las como se tudo estivesse acontecendo a milhões de quilômetros dali.
Eles conversaram mais um tempo então o outro foi embora e o Ricardo me conduziu lentamente até a recepção. Ele ia sair para avisar a família e perguntou se eu não queria pegar uma carona.
– Não sei, tenho que esperar a minha mãe…
– Vamos Cléo, não vai adiantar nada ficar aqui, não há nada mais que ainda possamos fazer… (estava abatido).
– Achei que estivesse melhor… (falei quando já estávamos no carro).
– Acontece algumas vezes, o paciente tem uma pequena melhora, e depois acaba… Pense que aconteceu o melhor para ela, descansou…
Eu estava triste, uma tristeza egoísta, não era por ela, mas por mim. Tinha passado horas agradáveis ao seu lado. É estranho pensar isso de alguém que eu conhecia há uma semana, mas eu gostava mesmo dela, sentiria falta de seu sorriso e de sua companhia. Mas eu sabia, alguma coisa me dizia que aquilo ia acontecer…
O Ricardo me deixou na casa do Guilherme e então seguiu até a casa da família de dona Carmem.
Eu não subi até a casa, apenas liguei pra minha mãe e pedi que viesse me buscar, não estava me sentindo uma boa companhia…
Ela me levou para casa, e combinamos de depois ir ao velório.
O Guilherme ligou, dizendo que já estava sabendo, e que tinha ficado chateado por eu não ter subido para falar com ele. Mas acabou entendendo que eu não estava no clima para ver ninguém. Comi pouco, mais pra contentar a minha mãe do que por qualquer outra coisa, depois subi e fiquei um tempo no meu quarto.
Eu não tive tempo de conhecê-la direito, deveria ter muita coisa pra me ensinar, e eu não tinha aprendido nada, eu nem sabia se ela tinha ouvido o final da história…
O corpo de Dona Carmem foi velado em um cemitério particular muito bem cuidado. A sala não muito grande estava cheia de coroas de flores e mensagens de amigos.
Tive medo de me aproximar do corpo, não queria que nada apagasse as boas lembranças, e ainda fazia força para me esquecer da cena da manhã.
Um homem grande e gordo de cabelos e pele clara chorava desolado próximo ao caixão, e imaginei ser o filho dela. Havia muitas pessoas e era incrível que mesmo sendo tantas, ainda fosse possível que durante os intervalos no choro do filho, um alfinete no chão poderia ser ouvido.
As pessoas estranharam a nossa chegada, acho que nem sabiam da minha existência, quanto menos da amizade que eu tinha com dona Carmem.
O Ricardo chegou pouco depois e juntou-se a nós em um dos cantos da sala.
– Já se despediu? (perguntou baixinho).
– Ainda não tive coragem…
– Se quiser eu vou com você…
Eu aceitei, sabia que minha mãe estava perdida ali, e a maneira de como ele falou me fez esquecer o medo, e encarar com mais naturalidade.
Nos aproximamos devagar, as pessoas olhavam para mim sem entender o que eu estava fazendo, como se eu não devesse estar ali.
Fantasiei rapidamente que aquele homem olhava para mim, e me culpava pela morte da sua mãe, como se ela persistisse vivendo se eu não lesse a última parte do livro, só porque queria saber o que iria acontecer.
“Nem sei se ela escutou” pensei voltando a Terra.
Ela estava serena, em paz, seu corpo estava coberto de flores e seu rosto era tão claro quanto seus cabelos curtos.
Cheguei perto para vê-la melhor, o filho tinha parado de chorar e me olhava intrigado.
– Você é a Cléo? (perguntou de chofre me assustando).
– Sou…
– A mamãe falou de você… (estava muito emocionado e eu não sabia o que pensar). Gostava muito de você… (um fio de sorriso passou pelo seu rosto). Muito obrigado, tanto você quanto o doutor fizeram diferença na vida dela…
Fiquei lisonjeada e não sabia o que dizer, mas o Ricardo falou por nós dois, dizendo que não fizemos mais do que ela teria feito por nós, e que poderia contar conosco se precisasse de alguma coisa.
Meus ombros estavam relaxados, era como se aquela declaração me livrasse de todo o peso…
Sai de lá mais leve e combinei com o Ricardo de ir com ele ao enterro na manhã seguinte.
Minha mãe convidou-o para jantar na nossa casa, então ele chegou logo depois da gente.
Subi ao meu quarto (não queria ficar empatando os dois), tomei outro banho (este para lavar a alma), liguei pro Gui e conversamos um pouco. Ele iria tocar novamente no restaurante, mas eu não estava tão bem assim para ir até lá.