E a outra Fitzgerald?
Fitzgerald. O nome é conhecido, celebrado, famoso. Mas e a outra Fitzegerald? Não, não me refiro à Zelda. Falo da Penelope.
A autora inglesa que escreveu nove romances, inclusive o vencedor do Booker Prize Offshore e o formidável Blue Flower, que recebeu o reconhecimento de melhor livro pelo National Book Critics Choice Awards e recebeu o título de melhor livro do ano dezenove vezes na imprensa em 1995, começou a escrever aos cinquenta e oito anos e morreu em 2000, aos oitenta e três.
De natureza mansa e de uma inteligência e uma perspicácia sedutoras, Fitzgerald foi uma das maiores romancistas do nosso tempo, na Inglaterra, e ainda fala-se pouco dela. Pelo menos não se fala o suficiente.
Gosto de me lembrar da história contada por Julian Barnes. Ao encontrar-se com Fitzgerald em um evento literário, pede que assine as cópias de dois dos seus livros. No primeiro, a autora escreve: “Best wishes – Penelope Fitzgerald.” No segundo, algo mais profundo, de significado inquestionável: “Best wishes – Penelope.”
Uma ilustração da inteligência aguda, mesmo que suave da autora. Algo que se reflete na sua narrativa.
Uma nova edição de um dos seus romances, publicada pela 4th Estate, A Livraria (originalmente, The Bookshop), consegue manter depois de quase trinta anos da data da primeira publicação, o charme irresistível da sua narrativa que trata de obsessões inglesas de saudável discussão: classes, por exemplo. O debate entre a classe trabalhadora e aquela intelectual sobre a obstinada Mrs Florence Green em abrir uma livraria num vilarejo de pouquíssima visibilidade e fora do mapa das artes e da cultura. A vida provinciana e suas armadilhas são apresentadas na usual forma elegante da escrita de Fitzgerald.
Conversas pequenas dão grandes insights e geram reflexão. Florence conversa com um dos trabalhadores dos alagados e ele questiona o motivo de ela teimar em abrir uma livraria por ali.
“Por que você acha que uma livraria é inviável” ela gritou ao vento. “As pessoas não querem comprar livros em Hardborough'”?
“Elas perderam o desejo por qualquer raridade’, disse Raven, raspando. ‘Há muito mais salmões vendidos, por exemplo, do que arenques semi defumados que tem um sabor mais delicado… agora, me digo, ouso dizer, que livros que livros não deveriam ser uma raridade.”
A história se passa em 1959 e a modernidade morde os moradores do vilarejo da região de Suffolk: mulheres começam a usar meia-calça ao invés de cinta-liga, Nescafé passa a ser a bebida desejada e, interessantemente, Florence reflete sobre a aquisição de livros que começam a ser lançados e celebrados. Há uma extensa passagem no livro sobre Lolita (Nabokov), quando Mrs Green se questiona sobre a qualidade do livro e diz que, mesmo mal falado, ela daria ao volume um espaço na sua prateleira desde que fosse bom.
Mrs Florence Green é uma mulher diferente. Sua teimosia em abrir a livraria num lugar mal assombrado, úmido, mas curiosamente desejado pelos ricos dão a ela um perfil quase revolucionário. É ela quem admite em conversa aparentemente trivial:
“Às vezes me choca que homens e mulheres não sejam bem as pessoas certas umas para as outras. Alguma coisa deve ser, claro.”
O final é triste. Os livros perdem. Mas ganha o leitor com mais uma obra prima de uma autora que é relativamente pouco falada, mas que guarda livros de distinção, de qualidade literária muito acima do que a média conseguirá jamais produzir.
Espanta-me tanta gente ainda desconhecer Penelope Fitzgerald e presumir que sua narrativa seja doce, calma e linear. Falamos aqui da mulher que escreveu The Blue Flower e que, com The Bookshop, foi indicada mais de uma vez ao Booker Prize. Não que prêmios e troféus sejam divisores de água quando se trata de qualidade, mas, ao desavisado, se isso não chamar a sua atenção para a escrita refinada dessa inglesa, não sei o que chamaria.
No 17 de dezembro, Fitzgerald completaria cem anos.
Curiosidades sobre a autora:
Penelope Fitzgerald publicou seu primeiro livro aos sessenta anos.
Foi, por décadas, jornalista trabalhando inclusive para a BBC.
Uma das suas técnicas para escrever romance era narrar o primeiro e o último parágrafos. Só aí ela tinha um ponto de vista e um narrador para começar a história.
Ela dizia que, na escrita, a linguagem é a barreira, mas é também a única ferramenta.