A Fórmula preferida do Professor, romance de Yoko Ogawa, mostra como solucionar uma fórmula para se relacionar com o mundo
E se o seu vínculo com o mundo se resumisse a uma fórmula?
A matemática é o que sobra e ela sustenta uma raiz. Ninguém faz ideia de que tipo de planta essa raiz é, e menos ainda como os números podem ajudá-la a crescer. Nem há como questionar por que apenas eles ficaram inteiros na cabeça do Professor, um dos protagonistas do romance A Fórmula preferida do Professor, da japonesa Yoko Ogawa publicado esse ano pela Estação Liberdade.
À primeira vista ele parece um sujeito esquisito, dessas pessoas que envelheceram sozinhas sem dosar a solidão, intransigentes de tantas manias inquestionáveis e mais confortáveis vivendo na própria cabeça do que no mundo. A roupa compete com a casa pra saber quem é a mais encardida, e a fala nem sempre ajuda de tão voltada pra si mesmo, tanto é que nem uma parente próxima tem paciência para o tentar entender. Daí a gente se aproxima e nota dúzias de papéis grudados na roupa dele, e um deles anuncia: “MINHA MEMÓRIA NÃO VAI ALÉM DE 80 MINUTOS”.
Quem faz a ponte entre essa figura nada exótica e a gente é a Narradora, a “EMPREGADA NOVA” do Professor. Pra ela seria só mais um cliente: ela recebe a ordem da agência de domésticas à qual está vinculada, vai à casa do patrão da vez e aprende qual o gosto da pessoa para limpeza. Atendeu tudo quanto é gente, mas até ser jogada para essa situação, nenhum desmemoriado. Tampouco um cuja ficha indicasse ter sido atendido por nove domésticas. Ninguém percebeu a fórmula de como se dar bem com o Professor.
Talvez nem a nossa Narradora sem nome, nesse romance onde ninguém tem um nome próprio mas todos têm identidade. A do atual patrão dela é rabiscada aos poucos. Ele era uma equação resolvida: estudou o quanto pôde, teve ajuda familiar, fez até intercâmbio, e envelhecia saudavelmente junto à matemática no exercício da docência. Assim foi até sofrer um acidente de carro que o deixou com uma sequela irreversível, limitando a sua memória em 80 minutos. Mas apenas ela, pois o seu vínculo com os números continua intacto.
Qual é a fórmula para falar com esse Professor?
A Narradora percebe que não adianta interrompê-lo enquanto ele está pensando, calculando na velocidade da luz a partir de uma coisa tão prosaica quanto um número de um tênis ou de um telefone. O Professor até prefere ser deixado na dele, enquanto ela é paga pra cuidar das abstrações domésticas. É de se imaginar se ele já era assim antes do acidente, tão absorto na exatidão das fórmulas, mas não há pistas disso. Apenas variáveis do que ficou desse senhor, e nós, junto à Narradora, temos de somá-las e descobrir o que está do outro lado da fórmula.
Um dos personagens que mais colabora para trazer essas variáveis à tona é Raiz, apelido que o filho da Narradora recebeu do Professor. O filho dela está em idade escolar, no do que seria o nosso Ensino Fundamental, e o Professor o leva pela mão para seu mundo. O vínculo dele com os números é tão próprio que ele os trata como amigos sem os idealizar, e sua paciência é tão extensa quanto uma dízima periódica.
Além dos números
Atento à formação numérica do Raiz, ele também faz dos números uma ponte para se relacionar com as pessoas dentro de suas limitações, infelizmente exatas. Sua sinceridade numérica se estende às pessoas que solucionam, ainda que parcialmente e com um tolo receio de não saberem adentrar nesse universo falsamente longe delas, a necessidade prática de lidar com um mundo abstrato.
Isso é evidenciado pela Narradora, cuja identidade fica em segundo plano boa parte do romance. Mãe solteira, leva o filho à labuta porque não quer deixá-lo sozinho, dá a entender que estudou pouco por ter priorizado o sustento, e dedica menos tempo do que gostaria para si e o seu filho. Ela tem notícia do pai de seu filho graças a um jornal, mas ele se torna uma abstração longe da sua realidade.
Cuidadosa ao conhecer as necessidades e manias do Professor, se esforça para não pisar onde acha que não deve. Às vezes parece intimidada por lidar com assuntos longe de seu cotidiano, barreiras pouco a pouco derrubadas na convivência com o Professor. Há menos barreiras entre essas pessoas do que elas imaginam, mas elas não têm a menor ideia.
O capítulo em que o Professor acompanha a mãe e o filho em uma partida de beisebol é um dos que trazem soluções à tona. Inserido à sua maneira no ambiente, o matemático vai além de seu exercício habitual, somando mais do que um amontoado de números ao esporte. A cena e seu efeito são breves, mas sintetizam as particularidades do protagonista e permitem a construção de uma ponte.
Nessa obra conduzida pelos personagens, o enredo é contado em uma linguagem transparente, e o foco está nas relações desses entre si, mais do que com o mundo “lá fora” da casa onde se passa a maior parte do livro. Há poucas menções à situação exterior, um prêmio em 1993 é a mais clara delas, mas nada que interfira na leitura. Publicado em 2003 no Japão, o romance A Fórmula preferida do Professor pode comover sem brincar com as emoções dos leitores, pois apresenta os personagens como eles se veem e abre um espaço generoso à interpretação externa. É uma das ações de seu protagonista, ao tomar Raiz pela mão: não se contenta em mostrar as soluções, pois estende o braço para que o outro também demonstre um caminho dentro dos 80 minutos de duração da sua memória.