É preciso que eu encontre uma maneira de começar a escrever esse texto. É exatamente assim que eu resolvo começá-lo, contando por que decidi escrever sobre isso. Meu nome é Gabriela, uma entre as milhares de Gabrielas que existem por aí. Especificamente tenho trinta e cinco anos, sou paulista de nascimento, mas moro em Porto Alegre desde muito pequena. Mas uma coisa me diferencia de todas as outras: meus gostos literários, além, claro das minhas digitais.
Nossas preferências literárias funcionam bem como digitais, são únicas. Alberto Manguel em A cidade das palavras – histórias que contamos para saber quem somos, diz que “As histórias podem alimentar nossa mente, levando-nos talvez não ao conhecimento de quem somos, mas ao menos à consciência de que existimos – uma consciência essencial, que se desenvolve pelo confronto com a voz alheia.” Essa consciência se dá através do que apreendemos de nossa relação com as obras. Ela, a literatura, funciona
como um espelho, escolho esta metáfora, pois este objeto para mim não se configura como a descoberta de uma imagem, de uma vaidade, mas sim, da descoberta de si mesmo. Existimos, portanto, refletimos no espelho.
A literatura então, de acordo com o que nos diz Manguel, tem a mesma capacidade do espelho: mostrar que existimos. Isso se dá pelo que chamamos de pacto entre o leitor e obra. Nos reconhecemos na obra, não apenas traços de semelhança entre determinada personagem e nós mesmos. Reconhecemos nossa humanidade nas personagens das obras literárias. Reconhecemos em seus sentimentos, ações e possibilidades prováveis situações humanas.
Lembro-me da primeira vez que percebi minha humanidade através da literatura. Foi num livro infantil. Eu tinha então uns oito anos. A verdade é que nunca li livros infantis, exceto quando obrigada ou na faculdade para poder estudar a história da literatura para crianças e jovens. Mas esse livro me deixava mesmo furiosa. A história se passava num domingo de chuva, o menino que era o protagonista da narrativa, tinha de passear de carro pela cidade com os pais. Era para o menino, a coisa mais entediante do mundo. Reconheci nele minha própria humanidade e desgosto com os domingos chuvosos.
Mais tarde quando eu tinha uns vinte e poucos anos, reconheci minha humanidade e as dores e desafetos a que todos estamos submetidos em Jane Eyre de Charlotte Brontë. Cada linha do romance me fazia pensar em quantas outras pessoas se sentiam como eu no mundo.
Outro exemplo desse reconhecimento é um livro sobre o qual já dei aula e escrevi: Esperando Godot, de Samuel Beckett. Eu não gosto desse livro, sou sincera, me desculpem. Não consigo aceitá-lo. Ele me deixa nervosa, angustiada e tremendamente desconfortável. Eu digo o porquê. Reconheço nele que somos passíveis em relação à morte. Esperamos algo que nos salve, que salve o mundo e que explique as coisas que não conseguimos entender. Godot e sua chegada que não acontece nunca, o constante diálogo repetitivo das personagens, me lembra a constante esperança dos homens de que Deus um dia se manifeste e diga alguma coisa.
Antoine Compagnon em Literatura para quê? Comenta que “A literatura é exercício de pensamento, a leitura uma experimentação dos possíveis.” Por possível eu entendo a qualidade de perceber o que realmente uma obra é para nós. Por que nos incomoda ou satisfaz? Ou simplesmente nos aponta nossa humanidade? A dor de Drácula de perder a quem ama, a criatura de Frankenstein que deseja ser aceita, o belo Dorian Gray que aspira a eterna beleza e juventude, Elizabeth Bennett que ama e ao mesmo tempo sente-se rejeitada por Mr. Darcy, Mrs. Dalloway e as memórias que vagam em sua mente, Bento Santiago e a reconstrução de suas lembranças em busca de uma resposta sobre Capitu, todas essas personagens são humanas. Eu posso enunciar tantas que nossa conversa não terminaria hoje, nem amanhã. Mas eu posso dizer sobre essa ideia que: a capacidade da literatura de nos irmanar através de seu universo é que a torna fascinante. A literatura existe para isso, para que reconheçamos, assim como através dos espelhos que somos humanos. Saber o que um livro nos mostra sobre nós mesmos é como olhar para as nossas próprias digitais: é o que nos identifica.