A metáfora do chiclete

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A metáfora do chiclete
Menino asiático feliz mascando chiclete e soprando um balão, contra fundo azul.

Análise do livro “10 reais e 1 maço de cigarros”, de Peter LaRubia, através da metáfora do chiclete, que se masca e joga fora.

Mascar chicletes

Adoro mascar chicletes. Sempre adorei. Mas hoje, graças a um texto esplêndido escrito pelo igualmente esplêndido José Castello na edição de janeiro do Jornal Rascunho, “Meditações em trânsito“, descobri que meu vício pode ser uma forma inconsciente que descobri para compreender o significado da minha existência. Afinal, diz o texto, a vida é isso: você mastiga para só no fim jogar fora. A vida é se jogar fora, é tornar-se desimportante.

O novo livro de Peter LaRubia (“10 reais e 01 maço de cigarros”, Patuá, 2024) trata dessa inutilidade a que chamamos vida — que está, sim, refletida, mesmo que canhestramente, na literatura.

Ghost writer vira chiclete

Capa do romance 10 reais & 01 maço de cigarros (Patuá, 2023)

O enredo é simples e absolutamente contemporâneo. José Garcia é um ghost writer. Toni Brandão, um tremendo best-seller, tem ideias de enredo que agradam em cheio o público, mas escreve tão bem quanto um tamanduá. A José Garcia, o protagonista, resta a tarefa hercúlea de transformar as ideias caóticas de Toni em textos compreensíveis, dividir o indivisível, dourar a pílula.

Em última análise, os livros de Toni Brandão são escritos por quem? José Garcia, é claro. Quem fica com os louros e a grana? Toni Brandão. E para José Garcia, o que sobra? A precarização que vem se espalhando pelo mercado editorial brasileiro, pois, como bom ghost writer, ganha uma miséria pelo trabalho insano que produz.

Até aí tudo bem. Se parasse por aí. Mas piora.

Um belo dia, Junior, irmão de José, que trabalha na editora que publica os livros de Toni, chama-o para uma reunião, cujo tema é a demissão de José. A razão de ele ser demitido, eivada de um detalhismo mais que sádico por Junior, é que ele, José, será substituído por um algoritmo: um aplicativo de Inteligência Artificial fará o trabalho tradutório de José Garcia que, tanto quanto os chicletes que gosto de mascar, naquele dia perdeu o sabor e foi jogado na lata de lixo da história.

Obsolescência e eternidade

Assim como Castello, Clarice Lispector tem uma crônica na qual narra sua primeira experiência com o mascar de um chiclete. Só, diferentemente do texto dele, ela conta que o chiclete representou algo que nunca terminava, pois ela mastigava, mastigava, mastigava e aquilo continuava ali, molemente dançando em sua boca, em vez de se desfazer como qualquer doce prosaico. Foi sua primeira experiência com a eternidade, Clarice arremata.

Curioso que um mesmo objeto pode representar perenidade, impermanência e frouxidão, tanto quanto pode significar solidez, permanência, imortalidade e eternidade.

A visão que LaRubia nos brinda em seu livro a respeito da IA mostra uma face dessa moeda que precisará ser muito debatida entre todos: leitores, escritores, editores, marqueteiros, livreiros e todo aquele que pertença à cadeia da economia livreira. As tecnologias servem para auxiliar o ser humano, mas o colocam sempre em xeque: o cinema acabou com o teatro? O streaming está acabando com os cinemas? As plataformas digitais de música estão levando o mercado musical a seu fim? Ou, antes, representam pontos de inflexão para essa enorme esquina epistemológica em que o homem está estacionado, indeciso se segue reto, retorna ou dobra – para qual lado, afinal?

Nunca dantes navegados

No livro de Peter, José Garcia vai tomar satisfações com Toni Brandão, o que leva o enredo a mares turbulentos, mulheres fatais, plot twists e questionamentos a respeito do valor da vida humana, da obra literária, do conceito de autoria. Afinal, trata-se de um “fantasma” conversando com seu “cavalo” literário.
Um naco de carne suculenta será abocanhado e comido por um cão, esteja ou não ela envenenada? O cão teria consciência da possibilidade da existência do veneno naquele amontoado delicioso de fibras de proteína bovina? Mesmo se soubesse, o que seria mais potente: seu sentido de preservação ou seu instinto de inarredável prazer?
José Garcia é o cão frente a frente com o naco de carne. Submete-se a uma glória refletida em Toni Brandão, mesmo à custa de retroalimentar seu ódio pelo book star tupiniquim. Topa ganhar uma miséria pelo trabalho de transformar excremento em matéria literária, desde que, mesmo que intimamente, possa se jubilar de ser o pai de mais aquele livro e, de lambuja, esconder suas próprias produções literárias do olhar crítico dos outros, pois jamais apresentou um livro sequer escrito por ele para alguém. Quem veio primeiro: o naco de carne ou o cão?

Pede a conta

De tudo isso, restam as questões não respondidas pelo livro (aliás, é obrigação de um livro responder perguntas ou fazê-las?).
O mundo gira, o tempo despenca ao nosso lado, nossas vidas avançam, sucumbem ao imenso abismo de contas e compromissos, casos e amores, encontros e despedidas, inícios e pontos finais. Mas nós permanecemos alimentando o vício do perigo, testando os limites da tecnologia e os nossos cães de olho no naco de carne mastigando os chicletes que a vida nos oferta.

Créditos HL

Esse texto é de João Peçanha. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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João Peçanha é escritor e professor. Doutor em Estudos Literários pela UFF e mestre em literatura pela USP. Tem vários contos premiados em diversas revistas nacionais. Seu livro de contos “Cantata para dezesseis vozes e orquestra” ganhou o prêmio nacional da revista Cult (2003). Sua peça teatral “O pacote” ganhou o prêmio nacional de dramaturgia da Fundação Cultural da Bahia (2004). Publicações: “Dezamores” (coletânea de contos reunida pelo escritor João Silvério Trevisan, 2003); “O pacote” (peça, 2005); “Satie manda lembranças” (contos, 2007); “O último selo” (crítica literária, 2009). Os romances vieram na ordem: “Patagônia Babilônia”, “Os cadernos de Pietene” e "Ave do sertão", este último escrito a quatro mãos com Paula Caminatti. Seu romance mais recente, "Aquela estranha arte de flutuar" (2022), foi publicado pela Editora 106.

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