A moldura do medo

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Romper a barreira do som é fácil. Quero ver conversar com aquele desconhecido – mas deveras atraente – na parada de ônibus.

Quando você finalmente decidiu romper a tal barreira de timidez que havia entre nós, pensei que meu coração ia parar, devido a tantos batimentos por segundo. Nenhuma caixa torácica aguenta uma escola de samba. Surdo, repique, chocalho e tamborim – e totalmente fora de sincronia.

Para manter a analogia: minha primeira respiração após seu cumprimento fez o som de uma cuíca, pra finalizar, tossi engasgado como um pandeiro.

Hoje, parece tudo tão bobo. Como éramos infantis, meu amor. Se soubéssemos do futuro, não teríamos hesitado, não teríamos sentido aquele pólo norte na barriga. Entretanto, isso fez com que valesse ainda mais a pena. O que mostra a importância do medo em toda e qualquer relação e principalmente na nossa.

Antes de dar o primeiro passo, havia o medo de te perder sem nem te ganhar. Mantinha-me pontual, ia para o ponto de ônibus todos os dias no horário exato, hesitante que não estivesse lá. Os dias que você não estava eram duros, mas me deixavam muito mais ansiosos pelo dia seguinte. Impetuoso por te ver, admirar tua beleza e tentar estabelecer algum tipo de contato visual, mesmo que sem querer.

Depois, veio o medo de te perder ao me encontrar. Falar alguma coisa idiota, infantil ou até séria demais. Que fizesse com que me julgasse errado. Algo que não se encaixasse em teus padrões, mesmo sem eu saber ainda quais eram. Há quem diga que devemos ser nós mesmos em qualquer situação, mas naquele momento, com 15 anos, eu sequer sabia quem eu era de verdade. Descobri com o passar do tempo, do teu lado, a cada beijo, cada sorriso, cada briga boba.

Éramos crianças ainda quando brotou em mim o medo da derrota. Como se a vida fosse um grande jogo, onde desafios são conquistados com pouca luta e temos oportunidades de sobra – entramos na faculdade. Ambos já não tão grudados, mas muito apegados. Quando mudei de cidade e combinamos de conversar por carta, percebi o quanto precisava de ti por perto. Fiquei com medo dos tantos rapazes que faziam o curso de engenharia contigo e você ficou com medo das tantas garotas que optavam pelo meu curso de enfermagem. Durante longos cinco anos, com pequenos espaços nos finais de semanas para visitas, senti medo de te perder para outro. Senti medo que outro herói fosse resgatar minha princesa.

Passamos por isso. E, depois de formados, senti medo de nos perdermos para a rotina. Longas jornadas no hospital público e os plantões gratuitos que escolhi fazer em institutos de apoio aos idosos e às crianças com câncer, para buscar algum sentido diferente para a vida, nos afastaram. Você demorou um pouco para encontrar algum grande negócio que aceitasse uma mulher engenheira. Tempos difíceis aqueles. Lembro como sempre me recebia com a janta, e nos finais de semana, quando tínhamos algum tempinho, você estudava e dizia que logo estaríamos trabalhando para manter nossa casa juntos. Eu falava do carinho das crianças no instituto e você contava sobre o que os vizinhos andavam aprontando. Ríamos juntos, por parecermos tão fúteis falando da vida dos outros.

Quando veio a oportunidade de viajar, foi disso que senti medo. Não que titubeasse por andar de avião, mas por ficar longe de ti durante seis meses. Era uma missão de ajuda em Angola, na África, para apoiar, na minha função de enfermeiro, os médicos que lutavam contra a subnutrição e o HIV na época. Você apoiou, disse que eu deveria ir. Disse que precisavam de pessoas como eu. Não só lá, mas no mundo. Foi uma semana antes da viagem que, com os olhos cheio d’água, você disse que iríamos colocar mais pessoas como eu no mundo. Estava grávida. Do nosso primeiro filho: Ícaro.

Fiquei.

É engraçado, mas o medo que senti depois foi pura insegurança. Imaginava que nosso filho não fosse me achar bom o suficiente, como você achava. Tinha medo, ou melhor; pavor que eu não desempenhasse tão bem a função de pai. Ficamos um do lado do outro, inseguros como quando tínhamos quinze anos, não nos conhecíamos, e esperávamos juntos o ônibus. Esperamos assim, nosso primeiro filho, juntos e nervosos.

Depois pequenos medos vinham e passavam: não vou saber colocar a fralda! Como vou acalmar o choro do pequeno? Ele é tão pequeno, nunca vou deixá-lo dormir longe! E se eu me virar dormindo e machucá-lo? Tantas coisas nós precisamos descobrir que quando nasceu a Carina já estávamos preparados. Por sinal, foi mais fácil, porém mais complicado. Nessa época, você já tinha um emprego bom, em uma multinacional. Os tempos estavam mudando. Lembro o ímpeto com que ia à creche nos horários de almoço, verificar se estava tudo bem com a pequena. Ícaro, já na escolinha, aprontava todas. Não foram poucas as reuniões de pais que chamaram nossa atenção.

Medo de não estar te dando atenção suficiente fez com que tirássemos as primeiras férias longe das crianças. Ele com 13 anos, ela com sete. Foi lá, no Caribe, que reacendemos velhos laços. Éramos jovens de novo. Usamos todo nosso tempo para nós.

Senti medo quando Ícaro entrou na faculdade de medicina e já mostrava a mesma preocupação que me moveu a gastar tantas horas da minha vida com trabalhos voluntários. Esse medo foi por estarmos perdendo nossos pequenos para o mundo. Afinal, a pequena Carina também já estava de namoricos. Ela contava só pra você e as duas mantinham os segredos longe de mim. Divirto-me lembrando das risadinhas que davam quando eu chegava perto!

Quando Ícaro embarcou no avião, rumo à Síria, para ajudar as vítimas da guerra civil, senti medo que ele não voltasse. Logo esse medo desapareceu e foi tomado por outro que me cobriu a visão. Logo que o avião dele decolou, você desmaiou.

Não sei, com meus anos de prática e minhas limitações de enfermeiro, diagnosticar com o instinto. Se soubesse, teria definido ali mesmo, no chão do aeroporto que você estava com um tumor maligno no cérebro.

Até seu último suspiro, meus dias foram tomados de medo. Um medo sombrio, que me corroeu por dentro, pois precisei manter a calma externa. Ícaro voltou uma semana após desembarcar em território sírio. Nada pode fazer por aqueles que lá precisavam dele. Nada pode fazer por você aqui também. Ficamos, entretanto, juntos, meu amor. Nós três segurávamos tua mão. Enquanto definhava, chorávamos. Mesmo quando parou de nos reconhecer, estávamos ali. Choramos juntos e nos abraçamos para tentar aliviar uma dor que nunca passará.

Romper a barreira do som é fácil, né? Nós conseguimos, embarcamos em uma vida supersônica, com medo e com vigor, vivemos como deveríamos ter vivido.

Escrevendo isso, lembro como meu coração batia quando você falou comigo pela primeira vez. Surdo, repique, chocalho e tamborim, tudo sem sincronia. Quando você nos deixou, meu amor, estava tudo sincronizado. Você colocou tudo no lugar. Com um último compasso o monitor sinalizou. Seu coração havia parado de bater.

Foi assim, meu bem, que deixei de sentir medo.

E comecei a sentir saudade.


Imagem: Margarida Araújo

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Sergio Trentini é estudante de jornalismo, mas já cursou psicologia e administração. “Essa eu termino” é uma frase que gosta de repetir, tanto para a faculdade do momento, quanto para as histórias que começa a escrever. É escritor, mas acha pouco sensato dizer isso em voz alta. A primeira vez que tentou escrever um livro foi com onze anos. A última; ontem.

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