A moral questionável de Os três mosqueteiros

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Depois de termos visto tantas adaptações, deixamos passar os pequenos detalhes de Os três mosqueteiros

802786Um dos grandes baratos da literatura é fazer o leitor entender como pensam as pessoas que vivem em uma outra época, ou em um outro lugar. Isso amplia a nossa percepção sobre o mundo e sobre os outros, transformando-nos – eu creio! – em seres mais abertos e empáticos. Para esse fim, poucas coisas são melhores do que olhar com atenção a moralidade de um personagem. Afinal, a moral (do latim moralis) consiste em um conjunto de regras adquiridas por meio da cultura, da educação, da tradição e do cotidiano que orientam o comportamento humano dentro de uma sociedade. Isso quer dizer que cada personagem, a partir da sua individualidade, acaba nos entregando também um panorama do lugar e do tempo em que vive, fazendo-nos notar o que é aceitável ou não naquele contexto.

Esta análise da moral foi um dos grandes divertimentos que experimentei na leitura de um clássico de Alexandre Dumas, Os três mosqueteiros. Quem nunca ouviu falar da história, não é mesmo? Adaptada inúmeras vezes para cinema, quadrinhos, desenhos animados e outros formatos, a saga dos quatro corajosos amigos que lutam para defender o rei Luis XIII já se encontra gravada no inconsciente coletivo. O problema é que esse excesso de reinterpretações acabou produzindo uma certa banalização da narrativa, ressaltando apenas os elementos mais valorosos dos personagens e deixando de lado seus vícios e comportamentos reprováveis, aspectos mais que interessantes trazidos pelo texto de Dumas.

Uma pena, pois justamente esses pontos de moral questionável são aquilo que mais os humanizam. Aceitar que Porthos, Athos, Aramis e D’Artagnan são corajosos e leais não apresenta desafio – afinal, poucas características seriam mais valorizadas em alguém, inclusive nos dias atuais. Difícil é engolir que Athos não passa de um alcoólatra funcional, que Porthos extorque sem remorso o marido idoso da amante e que Aramis, apesar de sua suposta vocação religiosa, mantém um caso amoroso bastante mal disfarçado. Isso sem contar o novato D’Artagnan, que bate em seu servo como reprimenda e que mesmo declarando-se apaixonado por uma mulher, vai para a cama com outra, sem que tal atitude lhe gere qualquer crise interna. Tratam-se de comportamentos pouco aceitos na nossa época, mas no mínimo relevados no século XVII, época na qual história se passa.

Além disso, por tratar-se de um romance histórico, não somente a moral dos protagonistas é questionada (e questionável). Personagens que de fato existiram, como o rei Luís XIII, a rainha Ana da Áustria, o Duque de Buckingham e o cardeal Richelieu, agem de maneira emocional e infantil, de forma a fechar portos e declarar guerras apenas para atender os caprichos de seus amores proibidos. Vistas sob olhos contemporâneos, essas atitudes assumem ares de crítica ao monarquismo absolutista, que concentrava na figura de reis e nobres todo o poder sobre o resto da população explorada – que inclusive lhes prestava serviços diversos, pagos até com a morte, de acordo com seus interesses individuais. Mesmo o narrador, situado ainda no século XIX, encontra-se em posição de apontar esse tipo de abuso, colocando um ou outro comentário em sua narração mas, principalmente, na voz e no pensamento dos mosqueteiros. Um exemplo é o encontro entre o Duque de Buckingham e D’Artagnan, em que este se dá conta de tudo isso:

D’Artagnan olhou com estupefação aquele homem que colocava o poder ilimitado de que era revestido pela confiança de um rei a serviço de seus amores. Buckinham percebeu, pela expressão do rosto do rapaz, o que se passava em sua cabeça, e sorriu.

O interesse do narrador pelo assunto talvez ocorra devido ao próprio histórico da França à respeito da questão. Nos duzentos anos que separam narração de narrativa, o país enfrentou uma série de turbilhões sociais, tendo a oportunidade de refletir profundamente sobre as ações e motivações de seus governantes. Nada mais natural, portanto, que essa reflexão transborde para as páginas de um romance de época, que procura trazer um panorama dos costumes e pensamentos de um determinado tempo.

A narração, aliás, é uma atração à parte. Dumas ficou famoso por sua habilidade em construir diálogos, e são eles que conferem, de fato, verdadeira alma aos personagens. Porém, o narrador, quando solicitado pela narrativa, é capaz de roubar a cena, tecendo comentários que vão do comovente ao irônico, dependendo do efeito que ele busca provocar no leitor. O episódio em que a senhora Bonacieux encanta-se por D’Artagnan é um exemplo claro deste último tipo, revelando jocosamente sua visão sobre o amor e o caráter da personagem:

Embora lutasse contra seus pensamentos, eles tinham como objeto constante o bonito rapaz tão corajoso e aparentemente tão apaixonado. Casada aos dezoito anos com o senhor Bonacieux, desde então vivendo restrita ao círculo de amigos do marido, pouco suscetíveis de inspirar qualquer sentimento a uma jovem mulher cujo coração era mais elevado que sua posição, a senhora Bonacieux permanecera insensível a seduções vulgares. Mas, sobretudo nessa época, o título de fidalgo exercia um grande fascínio na burguesia, e D’Artagnan era um fidalgo. Além do mais, vestia o uniforme dos guardas, o qual, depois do uniforme dos mosqueteiros, era o mais apreciado pelas damas. Ele era, repetimos, belo, jovem, aventureiro. Falava de amor como homem que ama e tem sede de ser amado. Tudo isso era mais que o suficiente para virar uma cabeça de vinte e três anos, e a senhora Bonacieux acabava de chegar a essa feliz idade da vida.

É claro que, por trás dessa avaliação, não encontramos apenas um olhar sobre a senhora Bonacieux, mas também um olhar sobre a mulher – tanto do ponto de vista do século XVII como do XIX. Isso seria incômodo se se restringisse apenas às personagens femininas. No entanto, mesmo os mosqueteiros são vítimas das falas por vezes zombeteiras do narrador, o que nos força a vê-los como passíveis de falhas e a desculpá-los por suas ocasionais atitudes pouco virtuosas. Isso cria cumplicidade entre leitor e personagens, gerando por estas a mesma simpatia que o narrador demonstra ter. A descrição a seguir é um exemplo desse modelo de crítica:

Quanto a Porthos, exceto por seu nome verdadeiro, que apenas o senhor de Treville sabia, bem como o de seus dois companheiros, sua vida era um livro aberto. Vaidoso e indiscreto, via-se através dele como através de um cristal. A única coisa capaz de confundir uma eventual investigação seria ela dar crédito a todo bem que Porthos dizia de si.

Tal apreciação do caráter do mosqueteiro aparenta desvalorizá-lo diante do público. No entanto, esses julgamentos são frequentemente precedidos ou sucedidos por algum outro comentário que suaviza as características negativas apresentadas, ou até por ações que fazem com que elas pareçam menos significativas. É quase impossível acompanhar essa voz narrativa sem se deixar envolver por suas interpretações perspicazes e carinhosas daqueles a quem descreve.

Obviamente, o livro não se resume à análise moral de pessoas ou de uma época. Trata-se de uma história de “capa e espada”, com sua gama de personagens cativantes, aventuras perigosas, vilões maquiavélicos e toda a habilidade de Dumas em trabalhar esses elementos de forma a ganhar o leitor. É o tipo de leitura que a gente faz numa piscadinha, de tão prazerosa e arrebatadora. Não vale a pena, portanto, se assustar com o tamanho do calhamaço (a edição recente da Zahar ficou a coisa mais linda!): Os três mosqueteiros é aquele livro delicioso, que você jamais vai se arrepender de ter na estante.

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