Pierre Bayard e a dúvida: Como falar dos livros que não lemos
Nunca li uma palavra sequer de Cervantes, tampouco de Tolstói. Presenciei alguns dos percalços do Ulisses homérico e do joyceano, assim como me inteirei, em parte, dos conflitos de Emma Bovary, apesar de não levar nenhuma das empreitadas, de nenhum deles, ao cabo. Da minha estante, um exemplar praticamente intacto de O velho e o mar de Hemingway me olha com ares de reprovação e acho que quando Murakami fizer 110 anos, eu talvez ainda não o terei lido.
Corroborando a péssima imagem que você, leitor, construiu a meu respeito, ganhei e, com voracidade, devorei Como falar dos livros que não lemos, de Pierre Bayard. Obviamente, nem o título do livro, nem esta resenha, são sugestões de leitura. É possível dizer que sejam sugestões de não-leitura. A questão que coloco, a princípio, é se você já leu tudo o que acredita que deveria ter lido, ou (e principalmente) se conseguirá ler tudo antes do Murakami morrer (e você virar pó).
Não à toa, Bayard começa o livro falando sobre Bartleby, de Herman Melville, um escrivão que, subitamente, começa a responder aos seus superiores com a frase “I would prefer not to”. Bartleby ecoa também em Deleuze e Guattari, quando desenvolvem uma reflexão sobre a lógica do “não” em Mil Platôs, onde também demonstram que, pela perspectiva da potência (aquilo que poderia ser….), é possivel quebrar a lógica daquilo que julgamos ser o único caminho de pensamento.
Deve haver um sujeito que leu a Comédia Humana inteira, mas arrisco dizer que, exceto os estudiosos de Balzac, ninguém leu-a completamente. Quando Bartleby põe-se em suspenso, quando Bayard discute sobre a natureza do que julgamos “racional”, saímos do modo automático de leitura, o que (como toda boa literatura) nos faz pensar não apenas como nos relacionamos com o outro, mas como vivemos também. Caso, em uma conversa, como um Pokemón, do nada, surja Balzac, todo o pouco que li de Balzac, o que de fato li sobre Balzac, e, sim, muito do que ouvi falar sobre Balzac, constroem a “minha” Comédia Humana. Sob uma perspectiva convencional, eu não li a Comédia Humana, mas será que realmente eu não li? Bayard demonstra que ler tudo o que é preciso, recomendado e, principalmente, almejado, é uma tarefa odisseica (homérica e joyceana), o que torna o princípio do “livro interior” de Bayard um fato.
Seguindo essa lógica, talvez isto não tenha sido uma resenha, ou talvez seja um breve ensaio sobre o “talvez”, ou talvez seja um grito de alguém “que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta” como Álvaro de Campos fez, ou talvez, e provavelmente, não seja nada.