Corrupção e choque entre culturas: A paz dura pouco, de Chinua Achebe

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Em A paz dura pouco, o nigeriano Chinua Achebe representa os movimentos que corrompem o homem, os conflitos entre a emancipação individual e a submissão às tradições, entre o idealismo e a concessão ao poder do dinheiro

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Chinua Achebe, um dos escritores africanos mais conhecidos do século XX

Obi Okonkwo é réu, com uma expressão tão plácida quanto indiferente, no julgamento que discute o fato de ter sido flagrado recebendo um suborno. Na sala lotada do tribunal em Lagos, Nigéria, os mais variados espectadores do grande evento discutem por que raios aquele jovem educado e de futuro brilhante teria cedido a tão vergonhoso papel.

Assim principia A paz dura pouco, romance do escritor nigeriano Chinua Achebe, grande nome da literatura africana contemporânea. Escrito em língua inglesa, o livro trata da corrupção, do choque entre culturas e da prisão que exercem determinadas tradições na vida dos indivíduos; são temas globais que, sob uma perspectiva de África, emergem e criam o tom representativo da sociedade na narrativa. A partir do fim trágico, a história pouco a pouco permite aos leitores acompanhar a sucessão de acontecimentos dramáticos que levaram Obi ao tribunal.

Nascido em um pequeno povoado de etnia ibo, o jovem recebe uma bolsa de estudos e vai para a Inglaterra, como uma grande promessa de sucesso entre os seus. Na capital, abandona o curso de Direito para dedicar-se aos estudos de Língua Inglesa. Conclui sua formação e, na viagem de volta, apaixona-se por Clara, uma jovem também nigeriana que conhecera algum tempo antes em Londres.

Vivendo em terras europeias, Obi reconhece o significado de sua origem e a importância de promover, na Nigéria, mudanças que gerem uma ascensão social e cultural. Sonha para seu país a libertação do sofrimento com o racismo estrangeiro, o fim das relações de favorecimento por tradições e ligações familiares, o fim de vícios e costumes tão prejudiciais àquela terra. Quando retorna, no entanto, encara uma realidade diferente do país que existia em sua mente saudosa e que tão promissor lhe parecia: o emprego que consegue no governo é permeado por relações de interesse e tentações envolvendo dinheiro ilícito, seu  salário não supre todas as necessidades e as dívidas se multiplicam, e a relação com Clara flui intensa e bastante conturbada.

A pressão sobre Obi vai além das esferas amorosa e profissional quando o jovem se vê materializando uma decepção para seu povo. Clara, em uma das tensas discussões do casal, revela a Obi que não podem se casar porque ela é uma osu, grupo desprezado e tradicionalmente excluído da sociedade nigeriana. O rapaz não aceita separar-se da amada, ao mesmo tempo que já não tem forças para enfrentar sua família e os moradores do povoado, que tanto nele apostaram custeando a bolsa de estudos para o exterior e projetando uma imagem de homem bem-sucedido e honrado que traria orgulho à casa. Debaixo do jugo das tradições e do dinheiro, em um ponto alto de conflito e já sem novos caminhos a percorrer, Obi passa a dançar conforme a música das ações irreversíveis, aceitando pequenas propinas e favores sexuais para cumprir determinadas ações em seu trabalho.

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A paz dura pouco (Companhia das Letras, 2013)

Chinua Achebe reflete com maestria os movimentos que corrompem o homem, os conflitos entre a emancipação individual e a submissão às tradições, entre o idealismo e a concessão ao poder do dinheiro. A paz dura um tempo brevíssimo no peito de Obi, quando, como anestesiado pelos acontecimentos, consegue sublimar suas culpas enquanto faz exatamente tudo aquilo que sempre repeliu.

“A desatenção de Obi não dava nenhum sinal de estar diminuindo, nem mesmo quando o juiz começou a fazer o sumário. Só quando ele disse: “Não consigo entender como um jovem com a sua educação e com um futuro brilhante pela frente pôde fazer uma coisa dessas”, ocorreu uma mudança repentina e marcante. Lágrimas traiçoeiras encheram os olhos de Obi. Ele pegou um lenço branco e esfregou o rosto. Mas fez como fazem as pessoas de seu povo quando enxugam o suor. Tentou até sorrir e desmentir suas lágrimas.”

 

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