[…]No Sertão a pedra não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
Em seu livro A Educação Pela Pedra, João Cabral de Melo Neto apresenta características que são determinantes em sua obra: centralização de temas nos motivos nordestinos, usando para isso a imagem concreta da seca; a escrita da poesia como um exercício em que abre mão do lirismo, declarando guerra à melodia; poesia como um objeto que revela o real, “dirigindo-se à inteligência do leitor, através de um apelo poético racional”.
Segundo a escritora Marly de Oliveira é em A Educação Pela Pedra que a “construção” dos poemas de Cabral vai ser mais complexa:
há poemas permutacionais, o Nordeste, sua cana e sua secura gerando o nordestino de falar pedregoso. É um momento alto da obra cabralina e um bom desafio ao leitor… (pág.12).
Esse falar pedregoso do Nordestino transmuta-se para a escrita do poeta. Para a poesia representar a aridez e a concretude, João Cabral recorre ao rigor na escrita. Com esse rigor, Cabral compõe seus poemas os quais as características predominantes serão a ausência de adjetivos (quando os utilizar, esses serão concretos), “camuflagem” do eu – lírico e, principalmente, o uso de signos que representam sua região como a pedra, a cana, o rio, a poça. Esses signos são fundamentais, pois são elementos plásticos de ilustração de sua escrita.
Ressalta-se que esse rigor, na obra Cabralina, muito tem a ver com as influências que o poeta sofreu ao ler os ensaios críticos de Paul Valéry. Marly de Oliveira escreve: “Valéry será sempre sinônimo da inteligência levada ao extremo, sobretudo na parte em prosa, de natureza reflexiva e crítica”. (pág.11).
Cabe lembrar, para se ater nessa justeza cabralina, muito inspirada nos textos de Valéry, um outro autor que escreveu a respeito das lições do escritor francês. Ítalo Calvino no livro Seis Propostas Para o Próximo Milênio, no capítulo intitulado Exatidão, destaca três concepções fundamentais para o ato da criação literária. Essas concepções encontram uma correspondência direta com a obra do poeta brasileiro. Segundo Calvino, a exatidão na escrita significa principalmente três coisas:
1) Um projeto de obra bem definido e calculado;
2) Evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis;
3) Uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. (págs. 71/72).
Tais concepções são recursos contundentes na obra de João Cabral. Em A Educação Pela Pedra, livro publicado em 1966, esses processos de escrita encontram seu ponto alto, traduzindo-se em poemas antilíricos com signos em que se supervalorizará o concreto como meta a ser atingida. Destaca-se, desse livro, a poesia Rios sem Discurso.
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque se cortou a sintaxe desse rio,
o fio de água por que esse discorria.
*
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
O poeta descreve, em 24 versos divididos em duas estrofes, o processo de “secamento” de um rio. Esse processo é comparado ao uso da palavra. O signo rio é equiparado ao discurso. Na primeira estrofe, quando o rio chega à condição de poça- água que se quebra em pedaços- ele se iguala à palavra em situação dicionária, ou seja, a palavra solitária que não transmite mensagem.
João Cabral, em Rios sem discurso, revela a realidade de uma região do Brasil que sofre com a seca. Como filho dessa região, mostra-se como “produto” do meio. O que Cabral tem a elucidar e a dizer é o que está no foco de seus olhos, a imagem, então, torna-se altamente significativa em sua poesia. Segundo o escritor Alfredo Bosi:
A experiência da imagem, anterior à palavra, vem enraizar-se no corpo. A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu… A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. (pág. 19).
A ilustração da seca é a realidade do poeta. O rio transforma-se em pedra, assim como a palavra muda não comunica. Na segunda estrofe do poema, há uma viabilidade, citada pelo eu-lírico, de o rio reatar-se. Essa viabilidade vem através de uma enchente em que, as poças unindo-se umas as outras, funcionam como as palavras que reatam seu elo sintático, formando um discurso. O poeta, porém, não ilude e não se ilude, a possibilidade aparece como algo raro “Salvo a grandiloqüência de uma cheia”.
Encarando a poesia como um ato de consciência, Cabral atinge aquilo que Alfredo Bosi escreve em seu livro O Ser e o Tempo da Poesia:
A lucidez nunca matou a arte. Como boa negatividade é discreta, não obstrui ditatoriamente o espaço das imagens e dos afetos. Antes, combatendo hábitos mecanizados de pensar e dizer, ela dá à palavra um novo, intenso e puro modo de enfrentar-se com os objetos. (pág. 173).