Vilto Reis, editor do Homo Literatus, e Murilo Reis, colaborador deste site, falam sobre suas impressões a respeito do filme The Hateful Eight, as quais apontam para interpretações literárias
Mikhail Bakhtin, no livro Problemas da Poética de Dostoievski, ao tratar do dialogismo presente na obra polifônica do autor de Crime e Castigo, menciona o diálogo socrático como meio de busca pela verdade, referindo-se ao método aplicado pelo filósofo ateniense, que colocava seus discípulos frente a frente para debaterem sobre um tema. Foi mais ou menos o que Vilto Reis, o editor do Homo Literatus, e eu resolvemos fazer depois de assistirmos a The Hateful Eight, oitavo filme de Quentin Tarantino. Escrevemos sobre nossas impressões a respeito do longa que, mais uma vez, dividiu as opiniões de críticos e fãs. Longe de chegarmos a algum tipo de verdade absoluta, nosso debate abriu novas possibilidades que apontam para interpretações literárias. Há alertas de spoiler pelo percurso. Os períodos prejudiciais aos que ainda não viram o filme foram transferidos para o final do texto, em forma de notas de rodapé.
V.R.: Murilo, quando você me convidou pra falarmos sobre este filme aqui no Homo Literatus, perguntei se dava para linkar com literatura. Depois de assistir, também achei que dava. Parece que o Tarantino resolveu filmar um livro, ou você pensa diferente?
M.R.: Concordo, Vilto. Algumas pessoas têm avaliado negativamente esse filme, dizendo que as suas quase três horas são desnecessárias, que a primeira metade é muito arrastada. Como fã desse diretor, claro que vou discordar. Acho que o Tarantino fez em The Hateful Eight o que melhor sabe fazer: colagens – algumas de filmes clássicos, outras de si mesmo (talvez essa seja a maior novidade). O tempo gasto nos seis capítulos é totalmente necessário. Todos os personagens são apresentados, mostrando a relação que cada um possui com o contexto histórico em questão, o ódio racial que ainda pulsa após o fim da Guerra Civil. Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), um caçador de recompensas negro que só poderia fazer isso para sobreviver. John Ruth (Kurt Russel), seu comparsa de profissão com o apelido de “Carrasco”, já que leva seus prisioneiros a serem executados perante um júri. Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh), sua prisioneira que vale dez mil dólares, sendo levada viva para que a fama do seu captor se cumpra na cidade de Red Rock. Chris Mannix (Walton Goggins), um sulista renegado que está a caminho de Red Rock para ser empossado como no xerife. Todos com antecedentes sangrentos, encontram-se no trajeto que a “Última diligência para Red Rock” (nome do primeiro capítulo) faz para chegar ao seu destino. Mas, por conta das condições climáticas, são obrigados a buscar abrigo no Armazém da Minnie, espaço confinado onde outros quatro personagens estão alojados e nada é o que parece ser. Surge a dúvida: quem, dentre essas oito pessoas, está mancomunado com Daisy Domergue com a intenção de libertá-la? Para mim, Tarantino fez uma colagem inusitada: um western whodunit, nos moldes do “Assassinato no Expresso do Oriente”, da Agatha Christie, tendo como espécie de Poirot o Major Maquis, único que já conhecia o lugar de longa data e sabe que ali as peças estão fora do lugar.
V.R.: Você tocou em alguns pontos interessantes. Primeiro, ao notar que o background do filme seria a Guerra Civil americana, fiquei com uma pulga atrás da orelha. Afinal de contas, desconheço o assunto. Mas o Tarantino focou muito mais na questão do ódio e dos ressentimentos do que na parte histórica, de forma que este filme poderia se encaixar na história de qualquer país, acredito. Pode parecer o lógico a se fazer, porém quantas vezes já não lemos livros ou vimos filmes em que o autor fica tão encantado com a parte história que acaba expondo mais sua pesquisa do que a própria narrativa? Também fiquei tentando caçar as referências, mas me parece que o Tarantino mais se autorreferenciou do que qualquer outra coisa. The Hateful Eight me lembra muito Cães de aluguel por necessitar, basicamente, de dois cenários. Digamos que algo bem mais fácil de se desenvolver num conto ou romance do que em um filme. No entanto, penso mesmo que onde o filme mais se aproximou de um livro foi na intromissor do narrador a certa altura do filme. O que foi aquilo?
M.R.: Li alguns textos que criticaram essa autorreferência – como o Thales de Menezes, na Folha de S. Paulo. Mas não é justamente isso que ajuda um autor a construir sua marca registrada? Na literatura, temos o nosso próprio Tarantino. Rubem Fonseca se utilizou do mesmo arquétipo várias vezes em sua extensa obra. Detetives do acaso inquietos com o mundo, matadores de aluguel impiedosos e sagazes, intelectuais solitários, escritores sanguinários e, acima de tudo, violência. Foi justamente isso que fez de muitas pessoas admiradoras do seu trabalho. E o que procuramos em Tarantino é sempre isso, o momento em que a violência exagerada e desmedida explode. Essa sacada do narrador – irônico, na maioria das vezes – já foi utilizada muito bem em Kill Bill Vol. 2 e Bastardos Inglórios. Acho essas intervenções fabulosas, típicas de um cara que leu muito histórias em quadrinhos e pulp fiction. Outra coisa que considero próxima da literatura são as pequenas histórias, metalinguagens inseridas no meio da narrativa, como o Cervantes fez no Dom Quixote – que, aliás, estou lendo. Pra quem não viu o filme, aciono aqui um alerta de spoiler: [1]
V.R.: Falemos de violência. Quantas vezes lemos críticas de pessoas dizendo que Tarantino é violência por violência? Enquanto assistia ao filme – em dado momento em que um tiro faz com que uma cabeça exploda -, percebi que várias pessoas davam gargalhadas na sessão de cinema. O mais curioso é ele tornar esta violência algo “divertido”. Também lembro do Rubem Fonseca aqui. Feliz ano novo apesar de violento, provoca uma certa estupefação divertida que nos segura na história – assim como The hateful eight. Você mencionou a cena que não queremos dar spoiler. [2]
M.R.: Essa “violência por violência” à qual as pessoas se referem já vem desde Cães de Aluguel. Muitos julgam desnecessária a cena em que Mr. Blonde (Michael Madsen) fatia o rosto e arranca a orelha de um policial amarrado a uma cadeira, algo num estilo (aparentemente) non sense que talvez nem o David Lynch faria. Mas não foi com violência que gente como Martin Scorcese e Brian De Palma se consagraram? A violência e o politicamente incorreto sacodem o espectador na cadeira, faz ele querer virar o rosto ao mesmo tempo que quer olhar cada detalhe da brutalidade que se passa na tela – e isso não quer dizer que ele a aprove na vida real. A violência retratada por caras como Tarantino e Rubem Fonseca é arte pura. Como o próprio Tarantino escreveu num texto presente no livro sobre ele organizado pelo jornalista Paul A. Woods (Editora Barba Negra): “É cool ser proibido”. [3] Não sei se ele redime, mas certamente realiza um tipo de vingança como a executada pelos judeus que partem pra cima dos nazistas em Bastardos Inglórios. Acredito que Marquis Warren seja a personificação da fúria causada por todo o ódio racial que imperava (impera?) nos Estados Unidos daquela época, um tiro que saiu pela culatra de cada homem branco que tentou matar algum negro gratuitamente ou motivado por alguma recompensa. Enfim, parece que, quanto mais se pensa em The Hateful Eight, melhor ele fica.
V.R.: Concordo com você sobre a violência. Poderíamos citar também o Chuck Pahlaniuk. Seu estilo cheio de coisas nojentas, sangue e tripas. A mesma violência que nos repele, causa horror, acaba nos mantendo ali. Mas eu recomendo ao leitor deste texto que assista ao filme e forme sua opinião, não é mesmo?
Notas de rodapé (contém spoilers do filme):
[1] em Os Oito Odiados, o momento em que o Major Marquis Warren narra ao General Sanford Smithers como matou seu filho é sensacional. O espectador fica sem saber se a sequência que mostra o rapaz à mercê de Warren faz parte da imaginação de Smithers ou se é realmente o que aconteceu. Ao final, o impecável Samuel L. Jackson arremata: “está imaginando, não está?”. E a carta de Abraham Lincoln? A prova de que uma história contada inúmeras vezes pode virar lenda até tornar-se verdadeira.
[2] Quantas vezes vimos um nu frontal masculino, sem a necessidade correspondente feminina, em um filme que atinge o grande público? Penso que esta coragem, algo que até deveria ser banal, mas não o é por construções culturais, acaba sendo a marca do artista. Queria falar também sobre simbologia. A primeira coisa que vemos no filme é a cruz e Cristo talhados em madeira, ao ar livre, fincados na neve. Isso antecede a chegada da carruagem que dará carona ao Major Marquis Warren, um bom samaritanismo tarantinizado. Curiosamente, se considerarmos o andamento do filme, o personagem de Samuel L. Jackson, de certa forma, redime os negros americanos ao executar sua vingança. Ou eu estou vendo coisas onde não tem? E aqui lembro de um ensaio do Slavoj Žižek, do livro Lacrimae Rerum, no qual ele questiona se ao interpretar as simbologias de filmes de Hitchcock, quando encontra algum erro, não acaba por inventar uma explicação simbólica só por ser um filme de quem é etc. Será que estou viajando assim por ser um filme do Tarantino?
[3] Não li muito a respeito de simbologias. Aquele Cristo talhado em madeira me pareceu um último ato de fé ou esperança no meio dum inferno branco. Lembrou-me o inferno de Lúcifer criado pelo Neil Gaiman em Sandman, só que, ao invés de rubro, é alvo. Mas, sim, acho que faz sentido a questão do samaritanismo.