O romance “Niketche – uma história de poligamia”, de Paulina Chiziane, fala sobre o machismo da cultura moçambicana e a força da mulher.
A primeira mulher negra a ganhar o prêmio Camões
Em outubro de 2021, o prêmio Camões, um dos principais reconhecimentos dados a autores de língua portuguesa, anunciou seu último vencedor: a moçambicana Paulina Chiziane. Conterrâneos da autora, como Mia Couto e José Craveirinha, já haviam recebido a mesma distinção, mas chama a atenção que esta foi a primeira vez que o prêmio chegou às mãos de uma mulher negra. Chiziane foi autora do primeiro romance publicado em Moçambique escrito por uma mulher, “Balada de amor ao vento”, de 1990.
Logo começou a correr pelas redes sociais uma entrevista feita com a autora após saber do fato. Em um quintal de terra batida, usando roupas simples e conversando sobre o assunto com tranquilidade, Chiziane encantou os ouvintes. Até então, poucos brasileiros haviam tido contato com a obra da escritora, que passou a ganhar mais visibilidade com a inclusão de “Niketche – uma história de poligamia” na lista de leituras obrigatórias do vestibular da Unicamp.
Niketche, uma história de poligamia
Este romance mostra-se um bom exemplo da força e autenticidade da literatura de Chiziane. A narrativa aborda uma situação bastante peculiar para o leitor brasileiro: a formação de um casamento poligâmico. Rami, a protagonista, é uma mulher comum, esposa do policial Tony e mãe dos filhos do casal. É ela quem fala ao leitor, em uma comovente narração em primeira pessoa.
A vida de Rami, apesar de financeiramente estável, é marcada pela ausência constante do marido, algo que a atormenta, mas que não consegue explicar. Rami, então, como muitas mulheres, passa a se culpar por esse desequilíbrio matrimonial, questionando-se sobre sua aparência e o quanto ainda era desejável a ele.
Tais dúvidas aprofundam-se quando a primeira grande revelação da história vem à tona: Tony possui uma amante. A imagem que tinha de seu casamento desaba e Rami, embebida em uma cultura machista, vai até a casa da amante cobrar satisfações. As duas acabam saindo aos tapas no meio da rua e vão presas. O que vemos no início da narrativa, portanto, é uma mulher ferida – tanto física quanto psicologicamente.
– Diz-me, espelho meu, serei eu feia? Serei eu mais azeda que a laranja-lima? Por que é que o meu marido procura outras e me deixa aqui? O que é que as outras têm que eu não tenho?
O espelho dá uma resposta muda e sorri.
– Vamos, responde-me, espelho meu.
O meu espelho responde com malícia:
– Ah, sua gorda!
– Não! Não achas que emagreci um pouco?
– Emagreceste, sim.
– Graças a Deus não precisei de chás nem dietas. – Vês como o teu marido é bom? Deu-te um desgosto benéfico, que emagrece. Tomara que esse desgosto te consuma mais um mês. Ficarás mais elegante que as estrelas de cinema. Tomara que todas as mulheres gordas tivessem maridos que lhes dessem desgostos. (p. 30)
A vingança da mulher traída
Contudo, a obra dá uma guinada ao colocar Rami como alguém que decide resolver a situação de uma forma menos convencional: ao saber da existência de outras amantes, a protagonista expõe o marido em uma reunião familiar e o força a assumir um casamento poligâmico, acordado conforme as tradições do país.
Tony concorda, ainda que reticente, imaginando que o novo arranjo permitiria que usufruísse dos prazeres que já buscava fora de casa de maneira mais confortável. Para não entregar muito dos desdobramentos dessa deliciosa vingança, digamos apenas que a solução se mostra muito mais complexa do que parecia originalmente.
“Semana vai, semana vem. Alimentamos o corpo de sonhos e memórias de amores que duram apenas uma semana. De coisas boas não se enche o papo, tudo o que é bom dura pouco. Poligamia é isto mesmo. Encher a alma com um grão de amor. Segurar o fogo que emerge do corpo inteiro com mãos de palha. Estender os lábios à brisa que passa e colher beijos na poeira do vento. Esperar. Ouvir os suspiros do teu homem nos braços de outra mulher e esconder o ciúme. Sentir saudade e não sofrer. Sentir a dor e não chorar.” (p. 111)
O inconformismo de Rami
O maior mérito da obra é trazer-nos a voz de Rami diretamente, fazendo com que mergulhemos nas angústias da personagem – e são muitas! Isso explica seus atos e faz com que nos solidarizemos com a sua situação precária de mulher, perdida em uma sociedade que pouco lhe dá voz ou crédito.
A obra mostra uma mudança significativa na postura de Rami, que aos poucos toma as rédeas da própria vida e desencava, em meio ao caos, todo o seu potencial feminino, essencial para mudar a realidade que a cerca. É um movimento de descoberta cheio de beleza, contado por meio de um registro que se inspira nas narrativas orais moçambicanas, repletas de repetições, metáforas e comparações que valorizam a sua poesia.
Vale destacar também a ironia do texto, sutil e evidente ao mesmo tempo, que faz com que questionemos o tempo todo por que uma mulher teria que ser submetida, socialmente, a determinados papéis. O final do romance arremata essa noção, ironizando todo o percurso traçado até ali. Há um inconformismo latente em Rami que nos toca em sua sinceridade.
“Se a poligamia é natureza e destino, por favor, meu Deus, manda um novo Moisés escrever uma nova Bíblia com um Adão e tantas Evas como as estrelas no céu. Manda por umas Evas que pilam, esfregam, cozinham, massajam e lavam os pés de Adão, assim em turnos. Não vale a pena escrever nada sobre o amor e o pecado. (…) Pode falar dos castigos, das dores, do sofrimento, que essa linguagem as mulheres conhecem bem. Não fale da maçã, que cá não existe. Fale antes da banana, que faz mais sentido nesta história. (…) E tu, meu Deus, nós te pedimos: liberta a deusa – se é que existe – para mostrar o rosto só por um segundo. Ela deve estar cansada de preparar tanto vinho, tanta hóstia aí na cozinha celestial, desde o princípio do mundo. Se não existe nenhuma deusa – meu Deus, perdoa-me – com tantas mulheres que o mundo tem, por que não fica com umas tantas dúzias?” (p. 83)
Uma mulher negra em Moçambique
Paulina Chiziane capta com lirismo e humor a vida de uma mulher negra em Moçambique, um país que tem um histórico de colonização avançada – a independência de Portugal se deu apenas no ano de 1975! – e que enfrentou uma guerra civil terminada apenas em 1992. Uma nação, portanto, com um passado difícil, ainda em busca de construir a sua própria identidade, assim como a protagonista do romance.
A leitura de “Niketche – uma história de poligamia” apresenta ao leitor brasileiro não apenas um pouco das tradições e da cultura desse nosso país-irmão (que vão sendo desmistificadas e colocadas em toda a sua complexidade), mas também uma reflexão importante sobre o lugar da mulher no mundo em que vivemos hoje. Que a voz de Paulina Chiziane, merecidamente reconhecida com o prêmio Camões, possa ecoar cada vez mais em nossas terras.
Referência
CHIZIANE, Paulina. Niketche – uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
Créditos Homo Literatus
Esse texto foi escrito por Carolina Prospero para nossa coluna Elas nas Letras. A revisão é de Fernando Araújo e a edição final de Nicole Ayres, editora-assistente do Homo Literatus.