A posse sobre o seu próprio corpo: Yolanda Domínguez e a Academia Transliterária

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A posse sobre o seu próprio corpo: Yolanda Domínguez e a Academia Transliterária

Uma reflexão artística sobre a propriedade do corpo a partir dos trabalhos de Yolanda Domínguez e da Academia Transliterária.

Yolanda Domínguez: Foto reprodução

O corpo na arte

O corpo e sua relação com o mundo é um tema caro à arte contemporânea. O trabalho artístico sobre o corpo pode se nortear por temas de existenciais a políticos, pode limitar suas questões ao campo da arte ou expandi-las para o mundo. Entre trabalhos líricos, herméticos, cifrados, graves, cada qual com sua potência, encontramos intervenções que lançam mão do humor e que chegam a mobilizar outros corpos.

Flávio de Carvalho foi um expoente desse tipo de intervenção na arte brasileira, principalmente com suas experiências nº 2 e nº 3. A primeira foi a resolução de usar um boné e caminhar no sentido contrário a uma procissão. O ato causou um tumulto, que, sem exageros, não fosse pelo pique do performer, poderia ter resultado em seu linchamento. A outra, mais conhecida, consistiu em passear de saia pelas ruas. Se hoje isso já seria escandaloso, pior foi em 1956, quando a ação ocorreu.

Os corpos não são livres

As experiências de Carvalho, ainda que suas próprias análises sigam outras linhas, desafiaram normas e colocaram em questão quem tem o poder sobre o corpo de uma pessoa. Diante das reações, em consonância com o que é reproduzido cotidianamente, e mesmo legalmente, o corpo é, antes de tudo, um bem coletivo e público sobre o qual a pretensão de posse ou liberdade é uma ilusão.

Flávio de Carvalho. Experiência nº 3. Fonte: https://fundacaoschmidt.org.br/flavio-de-carvalho-pioneiro-da-performance-que-escandalizou-os-anos-1950/

Alguns corpos são ainda mais cerceados por normas explícitas e implícitas, dentre os quais os das mulheres e os desviantes das normas de gênero e sexualidade. Da criminalização do aborto à justificativa de atos violentos em desrespeito ao modo de vestir e se portar, há um corpo propriedade cujo poder foge a quem nele habita. Das intervenções artísticas recentes que operaram este tema com uma tônica humorada, dois trabalhos me chamaram particularmente a atenção: Registro (2014), de Yolanda Domínguez, e A quebra da maldição desde seu nascimento (2017-2018), da Academia Transliterária.

Se o corpo é propriedade, que eu seja a proprietária

Fila – Yolanda Dominguez. Registro (2014). Fonte: http://yolandadominguez.com/.

Registro foi uma ação coletiva que mobilizou mulheres de toda a Espanha, incluindo mais de 14 províncias, para solicitar a propriedade sobre seus corpos nos Registros Mercantis de Bens Móveis. A ação resultou em filas extensas de mulheres exigindo o registro, lotando os locais responsáveis pela certificação oficial. Nas palavras de Yolanda Dominguez, as motivações do trabalho se pautam em uma reconquista simbólica das mulheres pelo próprio corpo:

O corpo é um território de reconquista necessária pelas mulheres. Um corpo moldado por outros e para outros, transformado em objeto, usado como mercadoria, atacado, manipulado e submetido a estereótipos impossíveis. Soma-se a essas dificuldades um Projeto de Lei sobre o Aborto apresentado pelo ministro da Justiça, Alberto Ruiz-Gallardón, que visa limitar a capacidade de tomar decisões em relação à maternidade e à moral. As formas apresentadas e lacradas fazem parte de uma ação simbólica que visa tornar visível o conflito pela conquista do nosso corpo. (DOMINGUEZ, 2021. Tradução nossa.)

O desejo de possuir a si que se alastra

Registro ultrapassou o território espanhol e também foi realizado por grupos de mulheres no México. No Brasil, a intervenção inspirou o trabalho A quebra da maldição desde seu nascimento, uma apropriação queer da ação, realizada pela Academia Transliterária em edições itinerantes. O trabalho consiste na inauguração de um cartório fictício na rua ou em espaços abertos de ampla circulação, a partir do qual o coletivo distribui, para quem interessar, a certidão de posse sobre o próprio corpo, em papel timbrado e oficiado pela Academia.

Certidão – Academia Transliterária. Documento de A quebra da maldição desde seu nascimento (2017-2018). Fonte: Cedido por Marta Neves.

Para “lacrar” o ato, o coletivo carimba e fotografa cada oficialização performaticamente e celebra com purpurina. Conforme relato de Marta Neves, as edições da performance contaram com longas filas de pessoas interessadas na documentação simbólica. Essa ação diferencia-se de Registro, marcando-se pela criação de uma ficção no espaço urbano ou de circulação, pelo improviso, por uma estética e ética queer.

Cartório – Academia Transliterária. A quebra da maldição desde seu nascimento (2017-2018). Fonte: Cedido por Marta Neves.

Cada corpo se empodera como pode

Não pude deixar de me perguntar por que uma ação potente como Registro não foi apropriada em seu poder de abalar equipamentos públicos no Brasil. O que se poderia esperar caso mulheres e pessoas LGBTQI+ se mobilizassem aos montes pelos cartórios exigindo certidão de posse sobre o próprio corpo no país onde o “rolezinho” de pessoas da periferia nos shoppings foi razão de escândalo e violência? Cabe pensar nos atravessamentos dos contextos sobre os conceitos e intenções de cada trabalho.

Mídia – Yolanda Dominguez. Registro (2014). Fonte: http://yolandadominguez.com/.

No que tange a Registro, dois pontos chamam maior atenção: no site de Domínguez, há um espaço que permite identificar algo como uma parceria com veículos midiáticos, como o El País, El Mundo, El Periódico e canais televisivos. Dessa maneira, conta-se com apoio para a circulação e mobilização das ações, permitindo maior alcance e recursos para a realização diante do interesse midiático nos trabalhos. Ao mesmo tempo, a mídia confere certa proteção ao ato, uma vez que pode flagrar possíveis abusos de poder. Há de se considerar também a diferença estrutural das repartições responsáveis por documentos dessa natureza em cada país. Seria possível, no Brasil, registrar posse sobre o próprio corpo? Qual seria o custo desse ato simbólico? Quem poderia arcar com isso?

Censura velada

Ademais, trabalhos de teor subversivo sofrem diferentes modos de censura velada no Brasil, como o conhecido caso do Queermuseu, em 2017. Mais recentemente, em 2019, a performance Coroação de Nossa Senhora das Travestis, da Academia Transliterária, que contou com apresentações anteriores e estava aprovada para a Virada Cultural de Belo Horizonte, foi cancelada na véspera de sua realização por provável influência de entidades católicas, ainda que o ato fosse uma paródia, sem elementos ofensivos, da tradicional coroação de Nossa Senhora, apropriando-se de elementos simbólicos desse ato para celebrar a vida das travestis.[1]

Liberdade de expressão em perigo

Como se sabe, situações como essas não são casos isolados, uma vez que se repetem no decorrer da história da arte brasileira, nos variados regimes e governos, mesmo naqueles que supostamente confeririam maior abertura para a liberdade de expressão. Fora isso, o circuito de arte nacional conta com poucas fontes de apoio e menor interesse midiático, exceto pelas polêmicas maiores, ficando restrito a recursos públicos, próprios ou pontuais. Tais elementos não impedem o uso de estratégias semelhantes à do trabalho A quebra da maldição desde o seu nascimento, que abarcam o envolvimento ativo do público na efetivação da obra. Embora essas estratégias não determinem a sua tônica, certamente reverberam em escolhas táticas na elaboração das estratégias da arte, particularmente em sua relação com questões políticas.

Inauguração – Academia Transliterária. A quebra da maldição desde seu nascimento (2017-2018). Fonte: Cedido por Marta Neves.

Considero que a opção da Academia Transliterária pela ficção, em sua intervenção humorada de compartilhar com o público o ato simbólico de ter propriedade sobre o próprio corpo, foi um ato responsável e carinhoso, evitando expor a possíveis situações violentas e constrangedoras pessoas que já as vivenciam cotidianamente. Um ato de fé na alegria ácida e no humor como ferramenta política, capaz de suspender a experiência automática da rotina e proporcionar uma fagulha de esperança e de potencial para a ação, ainda que mínimo, na luta por existir.

O riso é um cuspe de liberdade contagioso

No âmbito das artes visuais, o humor aparece como estratégia significativa em contextos políticos diversos, inclusive extremos. Tais usos do humor como estratégia política na arte podem ser visualizados, por exemplo, no movimento tropicalista no Brasil e na Estratégia da Alegria, criada por Roberto Jacoby como uma maneira de ‘não se deixar morrer em vida’ durante a ditadura na Argentina. Conforme aponta Mafra:

Pensar o humor como estratégia é pensar que os artistas não têm como objetivo provocar uma gargalhada no final, mas sim fazer valer as situações prazerosas que envolvem o trabalho e a realidade que os cerca. Dessa forma, além de compartilharem suas ideias e fazerem que o espectador que entende suas críticas se sinta valorizado, o artista colabora para uma distribuição igualitária de poder, apresentando o estado de espírito particular de cada um, o seu modo particular de ver as coisas e de colocar suas ideias para dialogarem. (MAFRA, 2017, p.212)

Além de um modo de sobrevivência às adversidades, sem ignorá-las ou aceitá-las passivamente, o humor se mostra uma estratégia sutil para mobilizar e desestabilizar modos sociais rígidos, conseguindo a atenção, pelo riso ou outras reações diversas, mesmo dos desatentos ou apegados aos padrões que são criticados ou provocados pela mensagem da obra.

Nos trabalhos de Yolanda Dominguez e do coletivo Academia Transliterária, o uso do humor como estratégia política na arte funciona como um movimento de redistribuição do poder, ainda que de maneira simbólica, contribuindo para mobilizar reflexões e sementes de ação que extrapolam o âmbito das instituições de arte e públicos especializados. A potência desses trabalhos se destaca por explorar a já reconhecida aproximação entre arte e vida por uma via dupla: não só a vida invade o âmbito da arte, mas a arte, efetivamente, contamina a vida, propondo com leveza cômica uma atitude séria e necessária de mudança. Essa atitude pode ser resumida pela questão:

E se você pudesse ter a posse sobre o seu próprio corpo?

Referências:

ACADEMIA TRANSLITERÁRIA. (Site). Disponível em: <https://academiatransliteraria.wordpress.com/>. Acesso em 15 de novembro de 2021.

DOMINGUEZ, Yolanda. (Site) Disponível em: <https://yolandadominguez.com>. Acesso em 3 de fevereiro de 2021.

MAFRA, J. S. O amargo humor da arte contemporânea. Tese (Doutorado em Arte e Tecnologia da Imagem). Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2017. 238 f.:il.

[1] Informações com base em entrevista realizada com Marta Neves em janeiro de 2020.

Créditos Homo Literatus

Esse texto foi escrito pela colaboradora Paula Peregrina. A revisão é de Raphael Alves e a edição final de Nicole Ayres, editora-assistente do Homo Literatus.

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