A presença do cânone em ‘Sargento Getúlio’, de João Ubaldo Ribeiro

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Sargento Getúlio discute a realidade sertaneja, fornecendo valioso material para reflexões de caráter nacional e, ao mesmo tempo, condensa indagações fundamentais sobre a existência

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Cena do filme “Sargento Getúlio” (1983)

De Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros, no interior do sertão brasileiro dos anos 1950, um militar de temperamento forte transporta um preso político a mando de seu chefe, Acrísio Antunes. No entanto, em vista de uma reorganização das forças partidárias em jogo – UDN e PSD –, precisa reavaliar, no meio do percurso, a ordem do chefe e decidir se cumpre ou não sua missão até o fim. Uma trama dessa natureza, aparentemente mais ao rés-do-chão, não deixa de explorar, por outro lado, questões humanas maiores, com isso reencenando os grandes dramas da literatura universal e fazendo de Sargento Getúlio, segundo livro de João Ubaldo Ribeiro, publicado em 1971, uma obra das mais expressivas não apenas no contexto nacional, mas também de considerável acolhida no estrangeiro. Sua relação produtiva com a tradição literária é um desses elementos que atesta a densidade da obra e, em larga medida, assegura a perenidade do texto de João Ubaldo.

Na sua trajetória em direção a Aracaju, Getúlio Santos Bezerra, famigerado matador, sujeito valentão, encara dilemas do calibre daqueles enfrentados por heróis homéricos. Como um Aquiles nordestino, prefere a glória de uma morte jovem, posteriormente eternizada pelo canto dos aedos, a uma vida aprazível e longa, porém apagada pela história, dissipada e subsumida no completo esquecimento, como se fosse mais um homem ordinário. Entre morrer velho e frouxo e morrer macho, entre uma morte morrida e uma morte matada, entre uma vida comprida amofinada e uma vida curta de macho, Getúlio sempre escolherá a segunda parte da formulação, isto é, a do reconhecimento heroico. É esse desejo que o impede de permanecer ao lado de Luzinete e com ela ter filhos, criando raízes num lugar. Ele segue os passos de Ulisses, que abandona o conforto e os encantos da nereida Calipso para retornar a Ítaca. Curiosamente, a etimologia do nome da nereida com quem Ulisses passa sete anos guarda o sentido de “esconder”, “ocultar”, contrariamente a apocalipse, que significa revelar, e com intenções semelhantes ao diminutivo em Luzinete. Ou seja, se Ulisses ou Sargento Getúlio continuassem respectivamente com Calipso e Luzinete, seus feitos não sobreviveriam ao tempo, tampouco seus nomes seriam lembrados no futuro.

Mas antes de tomar essa decisão pelo fim nobre, Getúlio parodia o mais conhecido solilóquio de Hamlet: “Levo ou não levo, é isso. Talvez seja melhor sofrer a sorte da gente de qualquer jeito, porque deve estar escrito. Ou é melhor brigar com tudo e acabar com tudo. Morrer é como que dormir e dormindo é quando termina as consumições, por isso é que a gente sempre quer dormir. Só que dormir pode dar sonhos e aí fica tudo no mesmo. Por isso é que é melhor morrer, porque não tem sonhos, quando a gente solta a alma e tudo finda. Porque a vida é comprida demais e tem desastres. Quem aguenta a velhice que vai chegando, os espotismos e as ordens falsas, a dor de corno, as demoras em tudo, as coisas que não se entende e a ingratidão quando a gente não merece, se a gente mesmo pode se despachar, até com uma faca? Quem é que aguenta esse peso, nessa vida que só dá suor e briga? Quem aguenta é quem tem medo da morte, porque de lá nenhum viajante voltou e isso é que enfraquece a vontade de morrer, E aí a gente vai suportando as coisas ruins, só para não experimentar outras, que a gente não conhece ainda. E é pensando que a gente fica frouxo e a vontade de brigar se amarela quando se assunta nisso, e o que a gente resolveu fazer, quando a gente se lembra disso se desvia e acaba não se fazendo nada”.

Esse diálogo travado com o cânone também se estende a autores brasileiros como Guimarães Rosa e Machado de Assis. Desse último, João Ubaldo parece aproveitar o recurso a um narrador que, ao falar, deixa transparecer suas contradições e violências. No monólogo verborrágico do Sargento Getúlio, é possível detectar sua crueldade com as mais de vinte pessoas que executou no passado e com o inimigo político sequestrado que está encarregado de transferir de um local a outro, arrancando dele, por exemplo, quatro dentes com um alicate enferrujado. Além disso, insinua sofisticadas formas de tortura para constantemente amedrontá-lo. Em razão desse mecanismo de que Machado se vale em romances como Brás Cubas e Dom Casmurro, a enunciação dos atos perversos depõe contra as tentativas de justificá-lo, dando vazão à hipocrisia e ao abjeto. Nesse discurso e nos rompantes e extremos que ele relata, ainda é possível verificar um personagem que se quer acima das instituições, acima de tudo e de todos, infenso, portanto, às coordenadas da lei e da religião. Por isso, não obedece à segunda ordem de soltura do prisioneiro, nem dá atenção às rezas do padre que lhe abriga. Daí também a identificação com o cangaço, e especificamente com a figura de Lampião. Nos últimos capítulos, essa crença num poder máximo é tão acentuada que a fala tonitruante do Sargento assume uma face mágica. Já não é Getúlio, é o Dragão Manjaléu, dono de um grito que atravessa o Estado de Sergipe.

Com Guimarães Rosa, João Ubaldo parece ter mais afinidades, sobretudo no que diz respeito ao trabalho inventivo com a linguagem e com a matéria sertaneja. A respiração dos parágrafos caudalosos do Sargento Getúlio lembra a narração cativante de Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas. Ambos narradores em primeira pessoa contam, divagam e refletem com um domínio exuberante da língua que ultrapassa o uso traquejado das variedades regionais. Aproveitam sua riqueza e forçam seus limites em função de uma linguagem ímpar, que, evidentemente, tem um lastro real, mas que só existe e se materializa na ficção. Aliás, tanto Guimarães Rosa quanto João Ubaldo souberam equacionar de modo profícuo a dialética entre o dado particular e os temas universais, verdadeiro impasse para parte substantiva da prosa brasileira de fundo regional. Em suas obras, a paisagem local e os homens rurais que nela habitam são descritos em seus costumes e com suas especificidades. Entretanto, as obras não se esgotam aí. Elas tratam, igualmente, de questões comuns às diferentes culturas, como a amizade, a morte, o sentido das coisas, o mal e as paixões. Tudo aquilo que faz com que nos fale de perto autores cultural e historicamente distantes de nossa realidade brasileira como Sófocles, Boccaccio, Cervantes e Dickens.

A cena que fecha Sargento Getúlio é um bom exemplo disso. Um rio separa Santo Amaro do destino final do protagonista, a Barra dos Coqueiros. Rio pequeno, quase nada comparado ao gigantesco São Francisco. Rio manso, de águas calmas e povoado por algumas canoas e barcos. Esse rio de tímidas proporções, no entanto, detona um conjunto de imagens das mais belas, profundas e recorrentes na literatura e nas artes. Sobre uma canoa, Getúlio desliza no movimento das águas desse rio conduzido não por Amaro, seu companheiro e motorista, mas sim pelo prisioneiro político, que nesse momento inverte a relação de poder que os tinha caracterizado até ali, e agora rema, como o velho barqueiro Caronte, não somente para a outra margem, mas também para a outra plaga, para o além. Nesse sentido, a cena passar a abrigar outras camadas de significados que nos remetem a essa imagem arquetípica da viagem e da morte e que, ao mesmo tempo, atualiza a tradição em solo nordestino, segundo os contornos particulares da escrita de João Ubaldo. Isso equivale a dizer, em última instância, que o romance discute a realidade sertaneja, fornecendo valioso material para reflexões de caráter nacional, mas dá um passo maior, quando não se restringe a ela, condensando, do mesmo modo, indagações fundamentais da existência, o que garante ao leitor um atraente exercício de sondar as múltiplas dimensões encobertas do livro, exercício que certamente terá a ganhar com leituras e releituras.

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