A quase (in)visível literatura de imigração na Europa

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O continente que mais chama atenção mais uma vez pela imigração precisa parar de avaliar o livro pela etnia de quem o escreve

immigration global citizenship reform obama congress bordersA Europa vem chamando atenção quanto aos números de imigrantes que se estabelecem, ou tentam, no continente nas últimas décadas. Com a baixa taxa de natalidade e a necessidade de mão de obra, o continente europeu, de início, não pôde simplesmente fechar as portas para os estrangeiros; conviver com etnias diferentes, porém, teve peso significativo e ultrapassou os limites do que deveria ser considerado natural, pois a porcentagem de casos de xenofobia aumentou muito e parte da população insiste em culpar os estrangeiros pelos problemas que acontecem em seu país. Não se trata apenas de discurso nacionalista, são palavras construídas com base no preconceito exacerbado dos nativos que defendem a expulsão dos imigrantes e a proibição da entrada deles na região. O que essa parcela populacional não percebe, porém, são os benefícios levados por esses estrangeiros e que o mundo deixou de ser construído por muros inflexíveis; as pessoas se locomovem por todo o planeta, elas se comunicam em tempo real pela internet, trocam informações, encontram raízes das histórias de suas famílias em lugares distantes etc. Provavelmente o fator mais interessante nesse mundo globalizado é justamente o fator cultural.

Hoje é possível conhecer outras etnias com alguns cliques pelo computador e se adequar àquela que melhor convém segundo suas percepções de vida, mesmo que seja completamente distante da cultura de seu próprio país. A arte vem passando por mudanças magníficas nos últimos anos, a literatura ultrapassa fronteiras. Sendo o maior objetivo de todas as artes estimular as mentes dos espectadores e do artista ser responsável pela transmissão de suas emoções e ideias, deveríamos continuar rotulando também a arte com base na origem do artista? “Que relação isso tem com o fluxo migratório para a Europa?”, talvez você esteja se perguntando. Bem, acontece que nesses últimos tempos a Europa está se reencontrando pelo olhar dos escritores imigrantes que tem suas obras praticamente desconhecidas pela maior parte da população por conta das posições daqueles que conservam o pensamento xenofóbico. As veias críticas são agressivas umas às outras, mas invariavelmente terão, um dia, de encontrar pontos em comum. Saberemos todos o resultado dessa imensa miscigenação daqui a algumas décadas, talvez séculos, e provavelmente vamos gostar dele.

Esses autores escrevem na língua do país onde residem no momento para que suas palavras possam, afinal, alcançar maiores dimensões onde eles estão; o que escrevem, porém, não pode ter – nem terá nunca – a mesma visão do nativo, inclusive na forma como escolherão se expressar naquele idioma. Isso se deve às experiências traumáticas derivadas dos perigos enfrentados pela imigração, é impossível fugir delas. Um indiano residente da Inglaterra não pode escrever sobre a Inglaterra dos ingleses, pois ele não é inglês. Esse indiano transcende a cultura inglesa, afinal, ele é um homem de duas culturas: aquela que é intrínseca a ele e aquela que ele aprende a se enraizar. A senegalesa Fatou Diome, que migrou para a França, em seu romance O Ventre do Atlântico, por exemplo, teve como inspiração sua própria vida para falar sobre as expectativas, desafios e riscos da imigração. Um francês escrevendo sobre o mesmo assunto corre o risco de não alcançar a mesma profundidade e conhecimento de Diome, e Diome terá visão singular sobre os franceses. O contrário também é válido, pois esse indiano e essa senegalesa nunca mais conseguirão ver seus países de origem como antes.

Porém, colocar um autor estrangeiro em uma categoria menor que a de um nativo, tendo os dois o mesmo talento literário, só pode ser explicado como discriminação. É o mesmo que não deixar seu filho ler um livro escrito por um muçulmano porque você é católico ou repudiar um William Shakespeare representado em mangá porque ele é um autor inglês sem a menor relação com o Japão. E, no entanto, é cruel separar a literatura em “literatura de imigrante” e “literatura nativa”, pois tais denominações reafirmam a discriminação. O escritor bósnio Sasa Stanisic, autor de Como o Soldado Conserta o Gramofone, vive desde os catorze anos na Alemanha, onde sua família se refugiou da guerra. Durante a FLIP deste ano, ele chamou atenção de muitos jornais ao afirmar que o lugar de origem de um escritor não está relacionado a escolhas estéticas ou estilo literário, que está cansado de rótulos que classificam sua obra como “literatura de imigrante”. Apesar de ter seu trabalho baseado nas experiências que envolvem sua família, Sasa prefere escrever em alemão por se sentir mais confortável.

Voltemos, então, a questão mais cedo levantada: sendo o maior objetivo de todas as artes estimular as mentes dos espectadores e do artista ser responsável pela transmissão de suas emoções e ideias, deveríamos continuar rotulando também a arte com base na origem do artista? A história da literatura não é oriunda de uma vila isolada do restante do planeta, onde apenas os aldeões escrevem e escrevem somente sobre eles. A literatura é a união de várias culturas espalhadas pelo globo e a única separação minimamente aceitável em seu ramo é a de gêneros – para categorização da obra pela obra, e não da obra pelo autor. Ninguém melhor que um imigrante para relatar o fluxo migratório pelo ponto de vista de quem vive, e isso também não desqualifica o escritor que apenas imaginou e pesquisou o tema para dissertar sobre ele. Por favor, a arte deve ser a última coisa no universo a sofrer segregação. E, por favor, os brasileiros também querem conhecer essas obras que nem mesmo os próprios europeus estão conhecendo. Vamos rachar esse filtro construído por bases preconceituosas e disseminar as ideias, pois com certeza há muito talento a ser descoberto nessas entrelinhas. Sobre a xenofobia dos europeus, apenas mais uma reflexão: imagine o que teria acontecido se, lá na idade média, os árabes não houvessem expandido sua cultura e trocado umas ideias com o ocidente.

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