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Em seu ensaio Em defesa de uma certa normalidade, a psicanalista Joyce Mc Dougall apresenta a seguinte frase: “Quem de nós está a altura da criatividade de seus próprios sonhos? Talvez alguns gênios e alguns loucos”. Fica difícil saber que tipo de pessoa é Quintana – se é que poetas são pessoas. Veja bem, é difícil caracterizar, exatamente, um poeta como pessoa; já que a maioria dos dicionários de língua portuguesa dão como definição para este verbete: “criatura humana”. Logo, vem-me a mente os seguintes versos de Quintana no poema O morto: “Eu estava dormindo e me acordaram/ E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco…/ E quando eu começava a compreendê-lo/ Um pouco,/ Já eram horas de dormir de novo!”. E de que é feito um poeta, de seu corpo ou de sua alma? Seriam os poetas materializações do mundo das ideias, de Platão? Deixemos de divagar para reconhecer que poeta e Pessoa ao mesmo tempo, só o Fernando; mas falemos de Quintana –. Não sei bem se o poeta gaúcho é louco ou sonhador, ou se existe diferença entre as duas coisas. A verdade que salta aos olhos – se é que existe alguma, tratando-se de literatura – é que ele abordou três temas com mais vigor, porém que fique claro, todos estão interligados. Olhemos as partes para entender o todo; e depois o todo para entender as partes.
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Se no poema Os parceiros, Mário Quintana afirma no primeiro verso que: “Sonhar é acordar-se para dentro”, isto não serve de base à afirmação de que ele esquece o mundo ao seu redor, pois nas linhas leves e divertidas tudo é retratado em pormenores.
No quinto poema de A Rua dos Cataventos, o poeta fala de um menino doente que não pode ir à escola e fica “sonhadoramente” – palavra que vai rimar com “gradativamente”, como se a situação do menino crescesse e se estabiliza para a cartada final do poema – na janela. Após falar sobre o menino, Quintana usa um termo que deve incomodar muita gente ao se referir a um poeta, “operário”; e a seguir, desconcerta o leitor ao afirma que este operário não canta; um jogo de palavras com carga inteligente, preparando para a estrofe final: “Ele trabalha silenciosamente…/ E está compondo este soneto agora,/ Pra alminha boa do menino doente…” – isto levanta o questionamento em que divaguei no começo do texto, pertence o poeta a este mundo? Ou está ele preso à sua carcaça humana, com a missão de servir a outras almas? Será possível que em Quintana se descubra nas entrelinhas dos versos a função do poeta? –; pensando no menino, deparo-me com o questionamento de ele ter existido ou não. O poeta sonhador me parece capaz de materializar realidades através de palavras, mesmo que a partir de coisas simples, da mesma forma que crianças se elas fossem onipotentes.
A perspectiva apresentada me levar a pensar na última estrofe do sétimo poema de A Rua dos Cataventos: “Eu quero os meus brinquedos novamente!/ Sou um pobre menino… acreditai…/ Que envelheceu, um dia, de repente!…”. Sem descambar para o ato de divinizar o poeta, vemos que ele se por um lado parece materializar pedaços de outra realidade, por outro está a versificar a vida; o mundo que o cerca.
Ao fazer-se menino, observa com olhos abismados tudo que está ao seu redor; ao mostrar-se ancião, exterioriza seu ser através de palavras; ao unir as duas coisas, faz-se poeta.
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Mas quando se unem o menino Quintana e o velho poeta, ou vice-versa, surge o sonhador, mesmo que em alerta, como no poema Os degraus: “Não desças os degraus dos sonho/ Para não despertar os monstros./ Não subas aos sótãos – onde/ Os deuses, por trás das suas máscaras,/ Ocultam o próprio enigma./ Não desças, não subas, fica./ O mistério está é na tua vida!/ E é um sonho louco este nosso mundo…”. Estes versos me lembram daqueles momentos em nossas vidas em que vivemos momentos de letargia – não, esta não é uma tentativa de impor uma moral ao poema, cada um que acha a sua ao ler os versos, mas foi o que eu senti quando li –. Às vezes, estamos sonhando, na verdade estamos a um passo de alcançarmos alguma coisa, porém não temos coragem de efetuar a ação determinante para o resultado; embora, quase sempre, ela seja arriscada. É como você querer ser escritor – ou coloque aí qualquer outra “carreira” artística -; no entanto, não consegue dedicar-se diariamente, renunciando outras atividades para aplicar-se ao estudo daquela que deseja alcançar, ou seja, do sonho almejado. Se você quer ser algo, precisa viver, respirar, ou pelo menos achar as razões para este algo. Em Dos sistemas, Quinta verseja: “Já trazes, ao nascer, tua filosofia./ As razões? Essas vêm posteriormente,/ Tal como escolhes, na chapelaria,/ A fôrma que mais te assente…”. Percebo que esta voz poética está me dizendo muito mais do que se supõe estar dito; soa-me mais como o fato de todos nós já sabermos o que queremos fazer, mas muitas das vezes não temos coragem de fazê-lo; e aqueles que dizem não saber, é por que não se acordaram para dentro.
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Mas se fala sobre sonhos e coisas cotidianas, Mário Quintana também não deixa de abordar o que para muitos representa o maior pesadelo da vida, a morte – faço aqui uma ressalva, pois a meu ver, a morte é a concretização de um “viver completo” –; o poeta foi além quando escreveu os versos de A morte é que está morta – dedicado a José Régio, um dos mais prolíficos escritores portugueses -, o poema começa com a frase que dá título a ele, seguindo-se de uma descrição digna de contos de fadas, no que se refere às características da figura mors. Então ele propõe que “…o que esperavas ser teu suspiro final/ é o teu primeiro beijo nupcial!”. A inversão de perspectiva chega a ser cinematográfica, saindo da esfera da construção verbal e indo para a construção visual; como se num diálogo entre o leitor e a morte no findo momento: “- Mas como é que eu te receava tanto/ (no teu encantamento lhe dirás)/ e como podes ser assim – tão bela?!/ Nas tantas buscas, em que me perdi,/ vejo que cada amor tinha um pouco de ti…”. Quem sabe você possa estar levantando argumentos sobre não ser esta uma ideia muito original, no entanto, como se fundisse conto e poesia, Quintana guarda o melhor para o fechamento, onde as linhas a seguir desordenam a concepção linear que o leitor propunha, ao fecharem o poema desta forma: “E ela, sorrindo, compassiva e calma:/ E tu, por que é que me chamavas Morte?/ Eu sou, apenas, tua Alma…/.
Em seus versos, o poeta gaúcho não “monstrifica” ou “demoniza” a morte; ele a torna leve, talvez até aceitável, dependendo do grau de rejeição do leitor.
Já em Torre azul, Mário Quintana faz até o mais resistente à ideia do suicídio, pensar ser algo natural. No terceiro e quarto verso do poema, ele diz: “Têm qualquer coisa de anjo esses suicidas voadores,/ qualquer coisa de anjo que perdeu as asas”. A seguir, num respiro poético, Quintana afirma ser necessário que se construa um túnel sem saída, onde um trem viajasse eternamente – sugiro aqui a hipótese de ele se referir a quem comete suicídio, jogando-se dalgum lugar alto; e a partir da “sugestão do poeta”, que estas pessoas nunca viessem a morrer com o impacto, mas caíssem eternamente –; e ao final, conclui de forma vaga, como se concluir não fosse importante – e talvez não seja –, divagando assim: “É preciso construir uma torre…/ É preciso construir um túnel…/ É preciso de morrer de puro,/ puro amor…/.
Ao ler estes poemas sobre um tema que se supõe pesado, deparo-me com a sensação que a própria morte encontrou alívio na pena de Quintana.
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Há muito mais a se falar sobre a poesia deste poeta gaúcho; e algo que não toquei até agora, mas me marcou bastante, foi o fato de ele ter homenageado num poema um escritor que admiro, Ray Bradbury. Às vezes, a literatura brasileira me parece alheia à literatura de outras partes do mundo, como se não se importasse – Machado de Assis é uma exceção interessante –, Mário Quintana demonstra um apurado conhecimento literário, remetendo a autores muito importantes no cenário histórico mundial, que ele, ao traduzi-los para o português, certamente os absorveu como referências que viriam a influenciar a sua literatura. Contudo, ele não é um mero repetidor de discursos, mas sim alguém que funde a vida com a poesia, expressando o que vem de dentro – inclusive, no poema Jardim interior isto fica bem claro, pois a partir do título, expressando o ser reflexivo, Quintana chega aos dois últimos versos desta forma: “O que mata um jardim é esse olhar vazio/ de quem por eles passa indiferente”.
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Quintana é um poeta para ser pensado, lido, sentido, quem sabe, até mesmo, respirado, mas tudo ao mesmo tempo, pois considero ser esta a única forma de absorver uma parcela mínima do que está contido em cada poema.
Ele não descreve sonhos com palavras, Mário Quintana escreve palavras, molhando a pena nos sonhos.
E ele é – e não, era – pois poetas não morrem.
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Os poemas citados encontram-se no livro: Quintana de Bolso, de Mário Quintana (Editora LP&M Pocket).
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