A composição das 'Mentiras' e do fazer literário

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Mentiras é um livro sobre relatos, retratos, ficções e outras mentiras

Felipe Franco Munhoz / foto: Público
Felipe Franco Munhoz / foto: Público

Mentiras é, a um só tempo, um livro sobre relações e uma (re)flexão dessas relações através do instrumental do relato. Ao esboçar inúmeras variações de um encontro amoroso com o único intuito de colher material para sua escrita, o autor (que se dilui na figura do narrador) trabalha no cerne etimológico da questão: Relação = Ato de relatar, relato, lista, listagem (Houaiss). E destrincha, disseca, lima. Monta a história, desmontando-a. Desenreda o enredo. Parte em busca de novas relações (só) para relatá-las e é relatando-as que elas passam a existir. Nesse sentido, Mentiras é um livro subjuntivo das possibilidades de relações e relatos, uma composição de contrapontos. Em suma, um livro sobre o escrever ficção. E escrever ficção é inventar, é mentir.
As mulheres do livro mudam de nome e de cheiro, mas bem podem ser uma só, porque não são nada além de fantasmagorias do narrador. Que por sua vez é uma fantasmagoria do autor, que deixa isso claro o tempo todo, como se dissesse sorrindo: “Gente, é tudo mentirinha.”
Ainda assim, entramos no jogo porque nos identificamos com ele ou simplesmente porque jogar é gostoso. E é gostoso porque o autor não esconde nada, não mente (!), deixa a fiação toda à mostra, abre a maquinaria da narração para o leitor. Ele o faz sem nos poupar de suas quedas de braço com a aspereza do material “palavra”, seus dilaceramentos enquanto escritor em busca da formulação exata; num permanente autoquestionamento, mas sem perder o humor. Por exemplo, no caso em que dúvidas são expostas quanto ao uso da norma culta ou coloquialidade nos diálogos, quanto ao uso de palavrões etc. É engraçado isso e doloroso ao mesmo tempo.
mentirasLembra-me Gantenbein, de Max Frisch – que é a história de um homem reinventando o tempo todo uma relação amorosa e a si mesmo através do processo da escrita. Frisch esboça os mesmos personagens em várias situações, profissões e constelações amorosas diferentes. Tanto em Gantenbein quanto em Mentiras mergulhamos nos diálogos apesar da falta total – da recusa – de ilusão e verossimilhança. O que me leva a Pirandello, ah, Pirandello…
As referências são muitas, afinal a escrita é um eterno diálogo com os mentores literários, é intertextualidade com a dor alheia. Penso ainda em Autran Dourado e suas confabulações com o mestre imaginário. Em Platão e Sócrates. Há tantos outros às nossas costas. Franco Munhoz brinca magistralmente com esses parâmetros e registros literários. O ápice é a morte “literal” do escritor, no final do livro. Esse diálogo com o diálogo literário é a chave para a compreensão de inquietações que vão muito além de “o quê” contar, mas antes revelam o aturdimento do escritor diante do mar agitado do “como”. E o leitor pega essa onda, se deixa levar, vira coautor com direito a socos de perplexidade. Ao final de Mentiras, o que fica é a sensação de alto mar, de não deu na praia, porque o relato acabou, mas as relações (reais e literárias) continuam.

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Carla Bessa / Niterói, RJ - Berlim. Estudei teatro na UNIRIO e na Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Depois, coloquei o pé na estrada e vim parar na Alemanha. Trabalhei 15 anos em teatros alemães, austríacos e suíços como atriz e diretora. Os ventos mudaram e eu com eles. Atualmente trabalho como tradutora literária alemão-português para as editoras brasileiras WMF Martins Fontes e Estação Liberdade. Escrevo resenhas e contos. O meu conto “Toc” foi publicado na antologia bilíngue “Sehnsucht ist ein verdorbenes Wort / Saudade é uma palavra estragada” em 2016 pela editora bübül de Berlim.

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