Adaptações cinematográficas de obras literárias causam, principalmente, muita polêmica – em especial entre os fãs. Mas, dá pra encarar o trabalho de um diretor leitor de outra forma, não dá?
O assunto é delicado e provavelmente nunca se chegará a um acordo, pois são infindáveis as discussões que surgem quando se fala em adaptações de romances para o cinema.
A primeira coisa que devemos ter em mente ao começarmos a ficarmos decepcionados com as adaptações cinematográficas é que um filme, por melhor que seja, é apenas um filme, não um livro. Pode parecer bobagem dizer isso, contudo esquecemos que um filme tem seus próprios recursos (imagens, edição, trilha sonora, fotografia etc.) e que estes estão a serviço do que o diretor quer mostrar – que nem sempre é o que o autor queria mostrar, como veremos adiante.
Em um romance, temos o suporte do livro e do narrador, que pode fazer o que quiser com o meio de comunicação que lhe é o ponto de partida: a linguagem escrita (Eu sei, pode haver um narrador em um filme também, porém lembramos que o narrador de um filme é diferente do narrador de um romance ou conto, pois no caso da narrativa escrita, ele tem toda a extensão do livro para se desenvolver – o que pode ser umas poucas páginas ou até alguns longos volumes, te levando a ocupar algumas boas horas, senão dias; no caso da película, fora algumas exceções, o narrador, mesmo narrando todas as cenas, tem em média uma hora e meia ou duas para contar o que tem a contar, e também há as imagens, a trilha sonora e outras coisas para auxiliá-lo na árdua tarefa – faça-se menção ao filme mais longo de que tenho notícias, Voyna i Mir de Sergei Bondarchuk com suas sete horas e tanto, não por acaso é a adaptação ao cinema de uma das maiores obras da literatura, Guerra e Paz, de Liev Tolstoi).
Além disso, há dois fatos que são extremamente importantes lembrarmos:
1) o diretor, por mais que esteja utilizando uma obra que tenha origem na literatura, está fazendo uma adaptação ou está se baseando nela, o que quer dizer que ele não vai fazer a mesma coisa que o autor já fez;
2) o diretor normalmente não está afim de apenas recriar totalmente a obra literária em película, porque, afinal de contas, ele quer acrescentar algo, dar o seu ponto de vista, utilizando o romance ou conto apenas como ponto de partida, não como ponto de chegada.
Poderíamos enumerar infinitamente diretores que adaptaram obras para o cinema, gerando controvérsias, histórias, mexericos, inimizades e decepções, mas vamos citar apenas um, talvez o que mais fez uso desse recurso, também sendo o que mais gerou controvérsias em torno do tema: Stanley Kubrick. Kubrick era apaixonado pela literatura e sua filmografia não deixa dúvidas dela, muito menos do alcance e do gosto variado que o diretor tinha. De romances vitorianos (Barry Lyndon) ao noir (The Killing), passando por narrativas de guerra (Paths of Glory e Full Metal Jacket), suspense (The Shining) e ficção científica (2001), ele percorreu quase todos os gêneros, todos com raízes fortes na literatura, adaptando-os, transformando-os em grandes obras – além de enfurecer alguns autores pelo caminho.
Nabokov ficou decepcionado com a versão de Kubrick para Lolita, dizendo que o diretor ignorou todo o trabalho de roteiro feito por ele. O autor ainda reclamou do fato de o fim estar na cena de abertura do filme, na qual Humbert Humbert encontra-se com Clare Quilty.
Stephen King sempre fez e faz questão de dizer aos quatro ventos que odeia a versão cinematográfica de O Iluminado. Critica a escolha do elenco, a direção, a atuação de Jack Nicholson e de Shelley Duvall. Mas as maiores críticas vão para Kubrick, pois, segundo o autor, o diretor mudou tudo o que ele queria passar no romance: Jack Torrance, uma espécie de alter-ego de King, é dado como louco desde o começo no filme, e Andy está lá apenas para gritar e ser tonta, o que não era para ser, segundo King. Como ponto culminante da falta de fidelidade de Kubrick, King critica a mudança no filme, onde o hotel deixa de explodir, chamando isso de absurdo dos absurdos.
Ainda sim, nada chega perto da reação de Anthony Burgess, autor de Laranja Mecânica. De um agrado inicial com o filme, ele foi progredindo para um ódio letal pela pessoa e obra de Stanley Kubrick, ódio esse que tinha origem, entre outros motivos, a omissão do capítulo redentor de Alex no filme e a suposta glorificação da violência por parte do filme – algo que irritou o católico e moralista Burgess. A raiva foi tanta que Burgess, em uma montagem do romance no teatro, escolheu um ator com o tipo físico semelhante ao de Kubrick para apanhar de Alex e seus rapazes.
É certo que também não podemos tolerar algumas gafes na transposição das obras – tais como personagens inexistentes na origem ou mudanças no enredo ao ponto de descaracterizar a obra original – contudo temos que aceitar, por mais que nos custe aceitar e nos doa, que um filme não é um livro. Alguns filmes são piores do que as obras originais, que é o caso mais comum, outros, entretanto, conseguem pegar narrativas chochas e transformá-las em grandes obras – Kubrick e sua versão de Laranja Mecânica que o digam. Tudo depende de quem está em cena e quais são os objetivos do diretor. Nosso papel como espectador é apenas um: esperar e ver no que vai dar.
Eu sei que no fundo de muitos de nós há uma voz chatinha dizendo “não foi isso que o autor quis dizer, não era isso”; para isso tenho apenas as palavras de Barthes: o autor está morto, o resto é história.