Um diálogo entre “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, e a realidade brasileira: sim, isto é possível.
Os méritos de uma obra de arte são difíceis de se explicar, sempre levando em consideração a necessidade humana de classificar tudo o que a rodeia, seja natural ou cultural. O que faz de Admirável mundo novo um clássico da literatura já foi analisado por diversos estudiosos. Foi classificado, dissecado, catalogado, esquecido e retomado vezes sem fim. Neste artigo a obra-prima de Aldous Huxley é resgatada novamente, pois na opinião do autor que vos escreve, sua principal característica artística é a assombrosa capacidade de prever o futuro da sociedade. E como acabamos de viver um momento histórico em decorrência das eleições, muito impulsionadas pelos eventos de junho de 2013, creio ser oportuno refletir sobre o futuro de Huxley. Ou seria o nosso?
O livro foi escrito em 1931. Narra os acontecimentos de uma sociedade cinco séculos e meio à frente do nosso momento atual. Se você não leu o livro e não gosta de spoilers, pare por aqui!
A sociedade pós-fordiana (Henry Ford 1863-1947) de Admirável mundo novo não sabe mais o que significa liberdade individual, ou em outras palavras, privacidade. Essa dimensão humana é indesejada para os administradores do futuro de Huxley, pois traz uma série de perturbações que desestabilizam a unidade da Sociedade feliz. Todos os integrantes dessa comunidade global são condicionados pelos métodos hipnopédico e neopavloviano (o livro foi lançado vinte anos antes da “descoberta” do condicionamento operante por Skinner). Esse tipo de tratamento promovido pelos engenheiros emocionais da ficção tem o objetivo de tornar insuportável momentos particulares, acima de tudo a solidão. A ideia é conviver o tempo todo agregado, sem segredos ou vivências que sejam isoladas do social, seja no trabalho ou nos momentos de lazer. Todos são de todos. Todos sabem da vida dos outros sem nenhum tipo de escrúpulo.
Que relação existe entre a ficção e a nossa realidade brasileira? A privacidade dos brasileiros está cada vez mais cerceada por tecnologias e controle de um suposto projeto coletivo. As nossas redes sociais, por exemplo, fornecem dados biográficos para qualquer um que tenha acesso a internet. Através delas o sujeito é exposto ao olhar anônimo, quer deseje ou não. Os usuários são monitorados grande parte do tempo pelos demais usuários em uma espécie de patrulha politicamente correta. O que isso quer dizer? Por exemplo, se eu não gosto de cachorros e divulgo isso na web em questão de minutos surge algum grupo de defensores dos cães para reprovar com veemência (quando não com violência!) minha fecal opinião. As últimas eleições foram exemplo desses justiceiros virtuais. Foi possível ver amigos de longa data, mas com diferenças políticas, brigarem para defender suas causas. O que dizer sobre as diferenças religiosas ou sexuais? Isso em apenas 83 anos desde a publicação do livro.
Se eu não gosto de cachorros tenho o direito de não gostar – isso não é sinônimo de maltratá-los. Mas, quando esse direito é compartilhado no mundo virtual posso ter problemas com os defensores dos cães. Que relação isso tem com a privacidade? Se estou em uma rede social, minha opinião deixa de ser minha e passa a ter importância para pelo menos dois grupos diferentes: os amantes e os haters de cachorros. E se opino sobre minhas preferências religiosas, políticas ou sexuais? Não é raro vermos pessoas sendo processadas pelo que disseram em SUAS redes sociais sobre SUAS opiniões. Outro dispositivo coletivo de controle da privacidade são os aplicativos que analisam/invadem a intimidade de terceiros sem sua permissão. Sem contar as milhares de câmeras espalhadas por ruas, shoppings, salas de aulas e residências.
“Um estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos de um Poder Executivo todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão.” (Aldous Huxley)
Não há mais indivíduos e sim uma Comunidade no futuro de Huxley. Não há o Eu e sim o Nós. Todos os princípios que regiam a sociedade do autor na época em que viveu, tais como a monogamia, o monoteísmo cristão, a supervalorização do Eu em detrimento do coletivo, são virados do avesso e transformados em uma sociedade estruturada em castas – é o fim do conflito de classe denunciado por Karl Marx. As castas são geneticamente programadas com predestinação social para colocar fim na desigualdade que se arrastou na história da humanidade desde os seus primórdios. No campo da sexualidade acontece a mesma coisa. Em Admirável mundo novo não há mais disputas relacionadas a temática do gênero. Os homens do futuro compreenderam que a repressão sexual é uma das principais fontes de neuroses e insatisfação. A necessidade instintiva de sexo, associada ao controle moral gerou uma série de conflitos ao longo da história humana. A solução na ficção é simples: acabar com a repressão. Como? Todos são de todos. Não mais necessidade de paixões ou amores monogâmicos, traições afetivas ou prostituição. Como foi dito, todos são de todos. É permitido e estimulado que todos tenham uma vida sexual ativa com quem desejarem sem o envolvimento afetivo. Abro parênteses aqui para um fato interessante do livro. Na sociedade de Huxley não há homossexuais. Por que será?
Seria pelo controle genético, fisiológico e psicológico das industrias que fabricam os bebês? Pois, como é narrado com maestria, em 632 depois de Ford não há mais gestação e partos do modo tradicional. Os seres humanos são fabricados em uma linha de montagem aos moldes do fordismo. Nessa linha são programadas as diferenças fisiológicas para cada uma das castas sociais. Além do mais, após a decantação (o parto industrial) as crianças são condicionadas com os métodos acima descritos para a programação psicológica da qual a comunidade necessita para o seu pleno funcionamento. As crianças são levadas a aprender que não há monogamia e nem necessidade de reprimir seus impulsos sexuais mais primitivos. Crianças passam boa parte do tempo de sua infância brincando com “jogos eróticos”, sendo condicionadas a aceitar que a sexualidade é uma manifestação natural de nossa espécie e que não há problema em se relacionar com qualquer um – qualquer um, é claro, dentro de sua casta –, pois não há mais a necessidade afetiva de estar com apenas uma pessoa. Esses jogos eróticos são ensinados sempre em grupo, com parceiros do sexo oposto. É o fim do homossexualismo.
Neste ponto, o(a) leitor(a) pode estar pensando: além de ser um absurdo sem pé e nem cabeça, é impossível realizar um feito assim. Lembro-lhe de que estamos falando de uma sociedade cinco séculos e meio à nossa frente, com uma tecnologia ímpar. Mas, como o objetivo deste artigo é discutir os efeitos na atualidade, vide as discussões recentes de certos parlamentares religiosos cujo objetivo é promover a “cura” da homossexualidade por meio de tratamentos psicológicos. Sabemos hoje dos avanços das psicoterapias cognitivas e comportamentais na ciência psicológica. Sabemos também do poderio farmacológico disponível à psiquiatria. Outro fato importante a ser considerado é a inconstância dos relacionamentos amorosos na atualidade. O aumento do número de divórcios registrados, a troca constante de parceiros(as), a divulgação massificada de valores antes considerados imorais, como por exemplo a traição, em meios artísticos musicais e televisivos. O fiquismo adolescente onde a meta é beijar(?) o maior número de sujeitos possíveis, fenômeno que está sendo estendido à vida adulta e infantil. Seria mesmo impossível? Olhe que ainda faltam mais de cinco séculos.
Com o fim dos conflitos de classe e sexuais – Aldous Huxley critica brilhantemente os postulados marxistas e freudianos – a sociedade está a um passo de alcançar a tão almejada felicidade. Com o fim das diferenças sexuais e de classe, ainda faltava o último passo para a implementação da felicidade plena na Terra. Apesar de abrir mão da liberdade individual pelo projeto coletivo, os administradores de Admirável mundo novo ainda tinham de lidar com a alma. Alterações genéticas e condicionamentos psicológicos não são suficientes para calar aquela chama humana que insiste em se manifestar nas situações mais improváveis.
“Se os nossos jovens precisarem de distrações, poderão encontrá-las no cinema sensível. Nós não estimulamos a procurar qualquer tipo de diversão solitária.” (Aldous Huxley)
Todavia, os administradores da sociedade do futuro(?) não são tolos. Eles sabem muito bem dos perigos da alma para o projeto felicidade. Para isso desenvolveram a droga perfeita, chamada soma. O soma é simplesmente a junção do álcool com o cristianismo. Pare um instante a leitura e pense nisso: álcool mais cristianismo! É a criação perfeita para domar as almas mais inquietas. Desse modo, além de todas as alterações genéticas e psicológicas promovidas em cada ser humano fabricado, sempre haveria o soma para calar os anseios da alma.
Se pensarmos no despreparo dos últimos candidatos à presidência no que se refere ao tema drogas, a superficialidade das discussões sobre a liberação da maconha e combate ao narcotráfico, fica ainda mais assustadora a previsão de Huxley sobre como a sociedade futura lidaria com a questão das drogas. Em Admirável mundo novo a população é condicionada a permanecer em um estado infantil mesmo quando adultos. Ninguém precisa lidar com a dor ou com a angústia da vida. Ninguém precisa esperar mais nada, todos os desejos estão à disposição do sujeito ao alcance de um click. Ninguém pensa ou filosofa porque há cinema sensíveis para estimular o entretenimento. Há músicas sintéticas. Há esportes para o consumo de mercadorias. Há o status social de sua devida casta para usufruir. E o melhor de tudo, sem paixões, amores, espontaneidade ou qualquer emoção de cunho anarquista e individual que pudesse balançar a subjetividade humana. Todos vivem para todos. E caso o organismo humano insista em rebelar-se contra todo esse controle, o soma apaga qualquer chama de insatisfação e coloca o sujeito em um estado de êxtase existencial.
“[…] é porque você não toma soma quando tem essas ideias horríveis. Você as esqueceria completamente. E, em vez de se sentir infeliz, ficaria alegre. Sim, muito alegre.” (Aldous Huxley)
Cinema sensível? Música sintética? Status social? Seria coincidência à similaridade com os nossos dias? Que tipo de filmes os cinemas reproduzem em seus circuitos? Que músicas tocam em rádios e programas de TV? Como o status social é alimentando entre as classes sociais?
Reflexões propostas por um escritor que conseguiu enxergar a frente de seu tempo. Um homem que utilizou a literatura para expor as inquietações da alma diante do tenebroso futuro que estamos construindo. Em apenas oitenta e três anos muitos mecanismos de controle sugeridos por Huxley já estão em uso. Alguns foram aperfeiçoados, outros nem mesmo sua genialidade foi capaz de antever frente a perversão humana.
A literatura de Aldous Huxley está chamando nossa atenção para a seguinte questão: se vendermos nossa maturidade a um estado infantil consumista de desejos e abdicar da liberdade humana para um suposto projeto de felicidade coletiva o preço a ser pago poderá ser muito caro.
“As palavras podem ser como raios x, se as usarmos adequadamente: penetram em tudo. A gente lê e é trespassado.” (Aldous Huxley)