Maura Lopes Cançado era uma náufraga tentando aportar num caminho de compreensão e razão
Da janela de meu quarto via as nuvens se formando para que se tornassem chuva. E ao mesmo tempo em que via a natureza se fazendo presente com tanta agressividade, terminava de reler uma ‘desconhecida’ escritora. E a conheci justamente quando lia com a mesma força, pela internet, uma frase que dizia: “Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol. Existo com agressividade.” A desconhecida escritora de tão poética e impactante frase se chamava Maura Lopes Cançado. E como é impossível falar do presente sem se esquecer do passado, até mesmo pela reconstituição histórica, Maura Lopes Cançado, após algum tempo fora de catálogo, é reeditada pela editora Autêntica.
Maura nasceu em 27 de janeiro de 1929, em São Gonçalo do Abaeté, cidade no interior de Minas Gerais. Morreu em 19 de dezembro de 1993, no Rio de Janeiro. Foi diagnosticada como esquizofrênica e sua internação no sanatório, inicialmente, foi por sua conta: “Ninguém entendeu esta internação a não ser eu mesma: necessitava desesperadamente de amor e proteção… o sanatório parecia-me romântico e belo. Havia um certo mistério que me atraía.”
No livro a História da Loucura, Michel Foucault relata que, na época da Renascença, havia barcos conhecidos como “Nau dos loucos”, que levavam sua carga insana para outras cidades em busca da razão. Maura fez do seu exílio ao hospício esse barco, tentando se encontrar, pois estava à deriva no mar das emoções. Escreveu dois livros ao longo de sua vida: um diário, intitulado Hospício é Deus (1965) e a coletânea de contos O sofredor do ver (1968).
O primeiro livro é um diário em que Maura conta sobre a sua internação, enquanto esteve, pela segunda vez, no Centro psiquiátrico Pedro II, no período entre o fim de 1959 e o começo de 1960. Sobre o porquê da escolha do livro com esse nome, Maura faz algumas considerações acerca do hospício:
“Hospícios são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro – como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde – paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício é deus.”
A presença de Deus em sua vida era tão forte que ela dizia: “Deus foi o demônio da minha infância.” Ou seja, Maura era reflexo da sua infância. O Deus que habitava a vida da escritora era qualquer coisa, menos Aquele que trazia o amor e a paz. Maura era o abandono de si própria. Havia muita lucidez no que relatava no livro, e no momento em que discorria sobre o seu cotidiano se sentia viva: utilizou-se da escrita como meio de se redescobrir, ou melhor, de sobreviver. Maura tentava sobreviver ao caos do mundo, se fazendo ser entendida numa sociedade de tanta incompreensão. Mas se perdeu em busca da razão, porque a emoção da escritora era mais evidente. A própria Maura menciona no livro que um amigo dizia-lhe: “Você ama desesperadamente a vida. Ninguém no seu caso resistiria.”
Ainda no Hospício é Deus, Maura já fala sobre alguns contos que está escrevendo. Contos esses que vão entrar no seu segundo livro, O sofredor do Ver. Este livro tem 12 histórias, muitas dessas oferecidas a alguns amigos e ao seu filho, Cesarion. Um livro forte, semelhante a situações que vivia, mas se afastando de uma literatura autobiográfica, com uma narrativa em terceira pessoa, ainda que o tema da loucura esteja presente. É o que percebemos no conto Introdução a Alda, um dos textos mais lindos já escritos na literatura brasileira. Neste, sua tessitura narrativa é muito bem elaborada, em especial pela forma humana como a escritora nos apresenta Alda. E essa personagem lembra a própria Maura, mesmo tendo existido de fato no sanatório. Há em Alda uma dignidade impressionante. Já o conto que dá título ao livro trata-se de um texto muito subjetivo pelo signo aqui utilizado: a pedra e o homem como protagonista da história. Existindo um embate entre os dois, a pedra estaria no caminho e o homem teria que buscar modos de ver através de uma nova perspectiva de vida. Todos os contos desse livro apresentam essa mesma visão profunda, analítica e psicológica dos personagens.
O que se percebe é uma Maura tentando controlar o impacto de tanto amor que tem a oferecer: ela é maior do que si própria e as pessoas não conseguem entendê-la. Maura era uma náufraga tentando aportar num caminho de compreensão e razão.
Maura sempre esteve à deriva na Nau da loucura, era uma prisioneira de sua “própria partida”. Então decidiu escrever, no seu mundinho, na sua embarcação o seu suposto destino. E Deus – ou o diabo – mais uma vez estava presente em sua vida: era o barqueiro, confiado para levar Maura nessa peregrinação ao mundo da razão. E enquanto ela embarcava para o mar infinito, continuava a escrever a sua vida, tentando fincar sólidas âncoras a fim de chegar até o seu porto seguro. E, quem sabe, enquanto partia, sentada num banquinho, em sua Nau, escrevia outros diários, assistia mais uma vez ao filme “Le ballon rouge”, lembrando-se de seu filho, redescobrindo e enxergando a própria vida e também o sentido das coisas, porque hospício é a própria autora – a sofredora do ver.
“A navegação entrega o homem à incerteza da sorte; nela, cada um é confiado ao seu próprio destino; todo embarque é, potencialmente, o último. É para outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca” – Michel Foucault