Albert Camus: O Estrangeiro e o Triunfo da Mentira

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Albert Camus: O Estrangeiro e o Triunfo da Mentira
Vencedor do Nobel de Literatura, Albert Camus marcou a literatura do século XX, principalmente com seu livro O Estrangeiro.
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Albert Camus

 “Ele representa neste século o que há de mais original em letras francesas. O seu humanismo mais teimoso, restrito e puro, austero e sensual, liberta-nos de um combate duvidoso contra os acontecimentos massivos e disformes de nosso tempo.”

Sartre 

Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, o escritor argelino Albert Camus é um dos grandes expoentes da escrita contemporânea. Ao publicar o romance O Estrangeiro, sua obra de maior impacto, iniciava sua Trilogia do Absurdo que se completaria com O Mito de Sísifo (ensaio) e Calígula (drama). Essa filosofia do absurdo de Camus, em muito, é uma retomada da tríade absurdista de Kierkegaard, que partia de uma postura estética, para uma postura ética; da ética para a religiosa (George Steiner).

Vários críticos literários classificam Camus como um filósofo existencialista, denominação que o autor sempre recusou. Ele mesmo escreveu: “Não sou existencialista, o único livro de ideias que eu publiquei, ‘O mito de Sísifo’, foi contra os existencialistas” (Barreto, 1991,p.20-21).

Em O Estrangeiro, a teoria do absurdo se personifica nas atitudes e nas reflexões das personagens e, também, do narrador-protagonista, Meursault. O jovem, funcionário de um escritório, recebe a notícia do falecimento da mãe, que encontrava-se internada num asilo na cidade de Marengo. Residente do distrito de Argel, o homem viaja para enterrá-la. Esse acontecimento, narrado no início da história, como se verá mais adiante, é essencial para o desfecho da trama. Meursault, ao chegar no asilo, nega-se em ver o corpo da mãe, pouco demonstra algum sentimento mais intenso de tristeza: não chora, não lamenta, apenas fuma muito e pouco fala.

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Camus na Revista Life

Ao regressar de Marengo, tendo ainda alguns dias de licença, o rapaz vai à praia para pegar sol e se banhar no oceano. Na beira-mar, reencontra uma ex-colega de escritório, a datilógrafa Marie Cardona, a qual desejara no passado. Os dois conversam e resolvem ir ao cinema para ver uma comédia. Ao anoitecer, a moça vai para a casa de Meursault. Os dois começam a namorar. Todos esses fatos são narrados em frases breves e sem muito aprofundamento. Em contraste às falas e à narração truncada, há uma riquíssima descrição do ambiente; aliás, a presença do sol e sua luminosidade, assim como do mar, sempre estarão presentes nas observações do narrador.

Além de se relacionar com Marie, Meursault torna-se amigo de seu vizinho Raymond Sintès,um homem grosseiro e violento que agride sua amante moura. A amizade se fortalece quando o narrador depõe, na delegacia, em defesa de Raymond, alegando que tal amante traira o amigo e, por isso, ele a espancara até sangrar.

Os laços entre os dois vizinhos se estreitam, e Raymond convida o protagonista para passar um domingo na casa de praia de um casal amigo, Meursault leva Marie com ele. No caminho, avistam um grupo de árabes, sendo que um dos integrantes dessa turma é desafeto de Raymond, devido a tal amante moura, mas nada acontece. Depois de os amigos se divertirem na praia e almoçarem, as mulheres ficam cuidando da casa e os homens decidem caminhar pela areia. Nesse passeio, os rapazes reencontram os árabes e a briga é inevitável. Na luta, Raymond é ferido e sai à procura de um médico. Meursault, por não querer encarar as mulheres e as perguntas sobre o ocorrido, decide voltar à praia para caminhar e leva com ele o revólver de Raymond.É nesse momento que começa a desdita de Meursault, o jovem sente a presença de outra pessoa, verifica tratar-se do mesmo árabe que ferira seu amigo:

“E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como uma longa lâmina fulgurante me atingisse a testa… Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou… Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça.” (página 63)

A partir do crime, adentra-se na segunda parte da história: a prisão de Meursault. O homem é interrogado diversas vezes, sua vida é investigada, seu advogado o orienta como agir no dia de sua audiência. As passagens mais instigantes do livro estão nas narrativas do cárcere e do julgamento do protagonista. Há, em tais fragmentos, uma crítica feroz à imprensa, ao sistema judiciário e seus artifícios e à religiosidade. No dia de seu veredito, o réu considera estranho a presença de muitas pessoas, incluindo jornalistas.Um dos repórteres se aproxima dele e explica o motivo de tantos profissionais do jornalismo. Nesse trecho, há uma crítica bem realista e oportuna à imprensa sensacionalista. Lê-se:

“Sabe, tivemos que aumentar um pouco o seu caso. O verão é uma época morta para os jornais. As únicas histórias que valiam alguma coisa eram a sua e do parricida. – Mostrou-me, em seguida, no grupo que acabara de deixar, um homenzinho que parecia um porquinho gordo, com grandes óculos de aros pretos. Disse-me que era o enviado especial de um jornal de Paris. -Aliás, não veio por sua causa. Mas como está encarregado de fazer uma reportagem sobre o parricida, pediram-lhe que se ocupasse também do seu caso.” (p. 88)

O capítulo do julgamento aborda, também, o quanto a manipulação da linguagem, num sistema jurídico, descaracteriza uma situação e distorce os fatos. É o que o promotor faz no caso do réu, que já não é somente acusado de ter matado o árabe, mas também por ter “matado moralmente” a própria mãe:

— Senhores jurados, no dia seguinte à morte de sua mãe, este homem tomava banho de mar, iniciava um relacionamento irregular e ia rir diante de um filme cômico. Nada mais tenho a lhes dizer.” (p. 98)

O advogado de Meursault rebate e tem uma resposta do promotor:

“Afinal, ele é acusado de ter enterrado a mãe ou de matar um homem!
— Sim  exclamou com veemência- acuso este homem de ter enterrado a mãe com um coração de criminoso.” (p. 100)

Fora o sensacionalismo e a distorção de fatos, o protagonista torna-se uma “vítima” por se declarar ateu. Meursault é inquerido incessantemente quanto a existência de Deus. O promotor irrita-se com a negativa do réu e, ao mesmo tempo, constrói sua acusação partindo desse ateísmo. Sendo Meursault um homem indiferente a todos os dogmas estabelecidos pela igreja, a tudo que é canônico, segundo a visão do promotor e da sociedade, o homem não merece perdão:

“[…] Mas ele me interrompeu e exortou-me uma última vez, do alto de sua posição, perguntando-me se acreditava em Deus. Respondi que não. Sentou-se indignado. Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os que lhe viravam o rosto. Essa era a sua convicção, e se algum dia viesse a duvidar dela, a sua vida deixaria de ter sentido.” (p. 73)

Por fim, o veredito da personagem é anunciado:

“Quando a campainha soou novamente e a porta se abriu, foi o silêncio da sala que chegou até o fim, o silêncio e aquela sensação singular que experimentei ao constatar que o jovem jornalista tinha desviado o olhar. Não olhei para o lado de Marie. Aliás, não tive tempo, pois o presidente me disse de um modo estranho que me cortariam a cabeça numa praça pública em nome do povo francês.” (p. 111)

O protagonista desta história, em nenhum momento, nega o crime que cometeu. Ele é merecedor de punição pelo que fez, mas jamais merece ser condenado por ter uma personalidade que destoa do que é considerado normal e padrão em uma sociedade. Sobre a recusa de Meursault se mascarar, Américo Lopes da Silva, no ensaio Reencontro com Albert Camus, escreve:

“Meursault não joga o jogo, ele se recusa a mentir. […] É o que sempre fazemos para simplificar a vida. Meursault, contrariamente às aparências, não pretende simplificar a vida. Ele diz o que é e recusa mascarar os sentimentos. […] Ele não sabe mentir e vive numa sociedade em que a sobrevivência depende disso.” (p. 173)

Com todas as suas idiossincrasias, Meursault até pode ser “acusado” por aquilo que a sociedade considera errado em seu caráter; só de uma coisa essa mesma sociedade não pode incriminá-lo: de ser dissimulado. O narrador mantém, até o fim, a sua natureza transparente, ele não participa dos jogos de manipulação, não compartilha da hipocrisia social, por isso mesmo é um estrangeiro no mundo, sucumbido pelo triunfo da mentira.

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