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Tem gente que nasce para viver à sombra dos outros. Toda luz tem que ter uma sombra. Naquela amizade, era Lena. Era mais bonita, tinha tido mais oportunidades na vida, mas não tinha brilho e estava condenada a andar atrás das sobras da amiga, como se fosse uma hiena.
– Você e aquele rapaz estão saindo mesmo, sério?
– Tudo leva a crer que sim. Quem diria não é?
– É sim.
– Vai no show amanhã? Disseram que vai um produtor famoso por lá.
– Mas eles sempre dizem isso.
– Sempre. E eu sempre acredito.
– O Christiano vai?
– Disse que se sair a tempo do prédio do Denver passa por lá.
– Você não se incomoda com a incerteza?
– Não. A tentativa dele, pra mim, já é mais do que o suficiente.
– Deve ser difícil namorar alguém tão ocupado.
– Deve ser difícil para ele namorar alguém que trabalha a partir do horário em que ele está saindo do escritório. A gente supera.
Aquela frase que mostrava toda a cumplicidade de um relacionamento feito para dar certo foi como um tiro no estômago para Lena. Não deu para suportar, então, que alguém tão inferior chegasse tão longe. E por isso foi uma das pivôs da separação de um dos casais mais bem sucedidos que já se viu por aí.
Forjou mensagens e ligações. Começou com mensagens no celular dela, inventando um admirador secreto que insistia em mandar mensagens picantes e íntimas; sabotagens no carro dele para que ele nunca cumprisse seus compromissos. Coisa de filme, sim. É que para ela essa coisa de ser politicamente correta para conseguir as coisas era…broxante.
Alimentou um ciúme que nunca tinha existido. Fez com que os lugares em que ele nunca estava e as mensagens que ela desconhecia criassem atritos e fossem a semente da dúvida na cabeça de ambos.
Fez com que a família a odiasse. Dissecou a origem humilde da moça, seu talento nada conveniente para as colunas sociais.
E conseguiu. Separaram-se.
Um grande amor está suscetível a tudo. E é frágil. Essa história de que grandes amores a tudo resistem é verdade: ele não morre nem vai embora, mas nem sempre é vivido plenamente.
Lena foi Fernand Mondego, pelas mesmas motivações. Só que não se pode ver na vida desta versão contemporânea de Conde de Monte Cristo a infelicidade de quem separou o casal. Lena foi feliz com sua versão masculina de Mercedes, que murchou pouco a pouco com o tempo. E para esfregar a vitória para a mulher que há muito fora sua amiga, fez o convite e mandou para o mesmo apartamento pequeno em que ela vivia há mais de oito anos – e que sempre viveria. Foi friamente calculado. E ela tinha a certeza do impacto que isso causaria na vida ousada, mas razoavelmente constante da “amiga”. A expectativa era que ela esbravejasse e talvez até aparecesse para um escandalozinho.
Como não houve reação, Lena continuou firme em seu propósito, cega pela própria autoconfiança.
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Já fazia 3 anos. Não seria capaz de mentir e dizer que não o amo mais. Mas isso já é tão parte de mim quanto um braço ou meu cabelo. Então não me incomoda mais, porque já faz parte de mim. E nunca deixará de ser. Com algumas coisas, a gente aprende a conviver, simplesmente.
Perdê-lo eu já tinha aceitado. Perder da forma que eu perdi, nunca aceitaria. Fora erro meu confiar tão cegamente em uma amiga. E um erro genético que eu tivesse sangue tão quente. Outro que eu tivesse nascido pobre, sem pai e que minha mãe tivesse morrido quando eu tinha 15 anos. Sem herança, sem família, sem dinheiro, só com um pouco de talento musical. Isso era o máximo que eu podia oferecer. Tudo isso fez com que aquele batizado se tornasse o ponto final de algo que, para mim, já era um casamento. A mãe dele perguntando sobre a minha tatuagem, a família dele perguntando sobre a minha, as insinuações a respeito da vida de alguém que trabalha, basicamente, à noite foram suficientes para que eu me irritasse profundamente e não conseguisse disfarçar.
Meu único remorso é tê-lo feito sentir vergonha de mim. Não desejei ser diferente, não quis que eu fosse outra pessoa, mais adequada. Só quis que as situações e os desencontros pudessem não ter acontecido. No fundo, eu não achava que ele tinha tido vergonha mesmo; acho que só queria a mesma coisa que eu. Mas não sei se eu achava isso mesmo ou só acreditava nisso para me sentir melhor por ter saído no meio da celebração.
Das discussões para o fim, foi um passo. Nem me recordo exatamente como foi. Do fim para o começo dele com Lena foi longo. Ele não sabia que ela era minha amiga: a mãe dele conheceu Lena em um chá beneficente, no qual convenientemente ela estava presente, tal como o espécime perfeito que sempre seria. Nem eu sabia que ela tinha armado os admiradores secretos e afins. Quando eu soube, nem tinha mais diálogo ou credibilidade suficiente com ele para alertar sobre o que estava fazendo. No mais, Lena era culpa minha, não dele. E foi tão dolorido que não ficou na minha memória.
Só deixei de ser amargurada quando vi uma foto dele nas colunas sociais, ao lado dela, em uma festa. Ela estava animada, emperiquitada, completamente inserida num mundo que tinha me recusado prontamente. E ele estava com uma taça de champagne na mão, sério e olhando para dentro dela. Aquilo pra mim mostrou uma solidão tão grande que me fez ter pena dele. Desde então, nunca mais senti nada que fosse ruim por ele, por mais que alguém possa argumentar que pena é algo horrível de se sentir por alguém. Ele só seguia o fluxo. Não era falta de personalidade, era só o espírito empreendedor do economista aplicado na vida profissional: nós não ficaríamos mais juntos, então era parte do negócio entender os motivos – minha excentricidade – e buscar outra pessoa que se encaixasse melhor – Lena. Todo mundo, menos ele, estava feliz. E se isso ia significar clientes satisfeitos – mesmo que os clientes fossem praticamente só a sua mãe – ele topava ficar com alguém que não tinha nada a ver com ele.
Chris era racional, nunca frívolo ou superficial. Ele só não tinha o perfil de quem ficava sofrendo. Era do tipo “O que mesmo você quer que eu faça? É isso? Feito, pronto.” Positivo ou negativo, ele sempre seria assim. Necessidade de agradar e baixa tolerância a críticas.
Lembrando disso agora, quase desisti do meu propósito. Quase. Mas não mudei de idéia. Sei bem o que vou fazer.
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– Por que uma cerejeira?- ele perguntou, deitado ao lado da cama com ela. Angela estava de bruços, meio sonolenta, coberta da cintura pra baixo. Sua cerejeira, linda, cheia de flores espalhadas pelas costas dela, estava completamente à mostra.
– Ela é totalmente linda: galhos delicados, flores lindas e dá cerejas, que são lindas também. A madeira é de qualidade e são raras hoje em dia. São um símbolo de beleza natural.
Aquela era uma resposta que lembrava ele do por que ele adorava estar ali. Não que a memória lhe falhasse. Eram só mais dados para o banco. E ele sabia, naqueles instantes, que aquela era a mulher que ele estava destinado a amar para sempre.
– Sabe que eu comprei um presente pra você na terra dos Beatles.
– Pra mim?
– Sim. – Ele disse, se levantando, colocando o calção e indo até o armário. – Eu sou muito influente por essas bandas, você sabe.
– Sei, sim. – ela disse, rindo. – Caxias como você é, deve ser mesmo. Nunca falta nem chega atrasado a nada. Você é lastimável. Um dia você vai faltar no trabalho aleatoriamente, eu tenho fé.
– Jamais. Enfim, enquanto estive em Londres, corri atrás de uma coisinha pra você. – Ele disse, entregando uma caixa enorme pra ela. – Abra.
Não precisou pedir duas vezes: ela rasgou tudo e chegou a um lindíssimo violão de madeira muito clara, quase branca, com algo escrito no canto superior.
“Rock it, girl. Mick Jagger”
– Mick JAGGER?
– Ele estava em um dos eventos da Virgin lá e eu contei que você é fabulosa, canta e adora Rolling Stones. Para comprovar, mostrei o toque do meu celular, que é você, cantando Beast of Burden.
– Que mentira! Não acredito!
– Como você é romântica. Eu faço você ser um sucessinho aos olhos de Sir Mick Jagger e tenho que ouvir esse tipo de comentário! Cadê meus beijinhos de agradecimento?
Ela pulou em cima dele e deu um abraço que quase quebrou as costelas ao meio. E aí ele soube, mais uma vez, a segunda só naquela manhã, que aquela era a mulher que ele ia amar para sempre.
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– Eu só queria entender o motivo.
– Alguém como eu não deveria sentir inveja de você. Agora eu não sinto. O universo faz sentido de novo. O contrário feria como se o sol girasse em torno da Terra ou como se um peixinho dourado comesse uma baleia. Isso, você é um peixinho dourado. Volta pro seu aquário que esse mar é grande demais pra você.
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