Amor, solidão e delírio – O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam – um clássico contemporâneo?

Evandro Affonso Ferreira

O título deste livro, sim, é longo. O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira. Mas, certamente, não foi isso que levou os jurados do Prêmio Jabuti de Literatura 2013 a atribuir-lhe o título de melhor romance do ano.

Há um conjunto de elementos que poderão lançar a obra à categoria de clássico brasileiro, uma concatenação de ideias com certa originalidade.

O personagem central da história é um mendigo que vai redescobrindo sua vida ao contá-la a um interlocutor identificado somente como “senhor”. Em dado momento, o mendigo afirma: “Minha mendicância é voluntária: perdendo a amada perdi incontinenti o interesse por tudo-todos” (pg. 39). E então, o leitor começa a compreender esta estranha figura que carrega consigo um livro de adágios de Erasmo de Rotterdam, o qual sabe de cor, e o tempo todo cita estas frases, combinando e recombinando com seu discurso, que exala poesia e tragédia. Entre seu relato fragmentado, embora construído no livro de um único parágrafo, que se estende do começa ao fim da obra, várias repetições vão dando unidade a um discurso emocional, como o “A-hã” quando ele pretende mudar de assunto, boa parte das vezes, citando o “A-hã: estou falando de Erasmo de Rotterdam”. E o mendigo vai relatando sua história, de dez anos na rua, embora não deixe as coisas exatamente claras, como se tudo pudesse ser apenas delírio. Basta que se observe seu vício:

“Os maltrapilhos alcóolicos entregam-se à bebida; entreguei-me ao grafite: entro em êxtase quando sinto o cheiro dele saindo deste objeto de madeira para fixar-se em forma de N, nos espaços vazios dos muros desta metrópole apressurada. Meu ópio grafítico”. (pg. 28).

Sobra também à obra uma espécie de “esperança triste”, um chegar-nunca-chegar que acompanha o pobre mendigo. Como ele próprio diz: “Maioria não consegue enfrentar, abstêmia, a própria miséria; vive no extremo oposto a qualquer idealização utópica. Há dez anos andando a trouxe-mouxe pela cidade vi-vivi cenas extremamente desagradáveis”. (pg. 18).

Mas se já não fosse suficiente a profundidade dramática do personagem e suas escolhas, sua narração sobre as cenas que vê na farandolagem – grupo de mendigos – são simplesmente enriquecedoras para a análise da obra e do contexto urbano. Sob o olhar deste intrigante narrador, surgem figuras descritas por ele como mulher-molusco e menino-borboleta. Estes dois personagens, aliados a vários outros mendigos, compõe o quadro miserável, universo de milhares de pessoas que habitam nossas cidades. Mas principalmente estes personagens sem nomes, apenas alcunhados,  ganham vida em sua forma edipiana de relacionamento. Menino-borboleta que, sem ninguém por ele, recorre ao carinho do ser tristonha que odeia a todos, como não cansa de repetir. Porém todos os dias a cena se repete, aninhado ao colo dela, menino-borboleta morde o sexo de mulher-molusco.

o-mendigo-que-sabia-de-corNuma combinação de amor, solidão e delírio, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam é um livro que realmente mereceu o prêmio recebido, muito embora um Jabuti de literatura ainda pareça pouco diante da amplitude da obra, um clássico contemporâneo.

 

O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam
Evandro Affonso Ferreira
Editora Record
2012
128 páginas

 

Vilto Reis
Autor do livro "Um gato chamado Borges", professor de escrita criativa e apresentador do Podcast de Literatura 30:MIN.
Vilto Reis
Autor do livro "Um gato chamado Borges", professor de escrita criativa e apresentador do Podcast de Literatura 30:MIN.
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