A poesia da Máquina de inventar instantes, de Cícero Almeida

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Máquina de Inventar Instantes e mexer com sentidos pela poesia

Cícero Almeida / crédito: Escambau.org

No seu romance A Brincadeira Favorita, que recentemente foi editado no Brasil, o poeta e músico Leonard Cohen sentencia: “O poema é uma coisa suja, sangrenta, incandescente que precisa primeiro ser tomada com as mãos nuas” (179). Lembrei dessas palavras do canadense ao iniciar Máquina de inventar instantes, de Cícero Almeida.

Acostumado a escrever sobre obras com longos parágrafos que formam longos capítulos e páginas e mais páginas de narrativa, seria um desafio encontrar uma organização do pensamento para essa resenha. Daí resolvi seguir esse “plano metodológico” de Cohen, que pode tanto se referir a quem produz, como a quem lê um poema – obviamente me enquadro no segundo caso.

Uma primeira leitura sem marcar absolutamente nada no livro, apenas experienciando. Numa segunda leitura os apontamentos na lateral, que já ensaiavam o texto futuro. Até que, na última etapa, a escrita acompanhada da releitura.

O resultado é essa organização por “Atos”, que obedece à separação que a própria edição sugere ao apresentar páginas negras que, ao que parece, dividem e criam uma forma de pensar o material.

ATO I

Não pode ser por puro acaso que o livro abra com o poema Gênese [“… e nasceu a poesia”]. Começa aí o jogo de espelhos entre o autor e o seu suporte textual, num embaralhamento proposital ou mesmo inerente ao ato da escrita. Logo em seguida vem Homem e Palavra, os quais confirmam essa tendência da criação, estabelecendo uma função dentro do universo da palavra que será tão cara ao autor durante todo o percurso da obra.

Cícero por vezes se aproxima, outras se afasta, do interior do poema, sendo que o denominador comum desse processo talvez esteja em Poética do Devaneio: “descobri a verdade inventando”. Não há como pensar o livro fora dessa proposta, a produção de sentido. Mais, a produção de sentido no mundo moderno.

E quando digo “moderno” é porque a figura da “máquina” e do “tempo” será artifício recorrente, o que nos leva diretamente ao…

II ATO

O próprio título já lança mão dessa junção entre a máquina e construção de sentidos no âmbito do tempo. A inserção do tempo dentro da escrita de cria uma espécie de circuito da maquinaria, da nova forma de organizar a temporalidade através do “relógio”, do “vagão”, chegando inclusive a escrever em determinado momento: “o tempo o consumia”. Não há nada mais pós-industrialização [modernidade] do que esse tratamento, o tempo enquanto produto que consome o homem.

Será difícil encontrar algum poema que não o aborde: hora, relógio, instantes, pêndulo e até escapismo desse universo de referências, com no caso de Toada para os pássaros:

“neste mundo imenso e doido

entre tanta correria

ao parar no poema

a gente voa”

Outro vetor da modernidade que está presente é o da “multidão”. Ao dizer “eu sou um homem/em suas multidões” obviamente fala da fragmentação de si, mas também coloca em perspectiva a individualidade que se perde no decorrer do dia (de trabalho?) e que massifica os homens – relegando a individualidade ao plano tão somente do subjetivo (o poema?).

maquinadeinventarinstantesE ao longo de todo esse “ato” reverbera junto com o trabalho de Cícero Almeida o que um sujeito chamado Julio escreveu e chamou de “Preâmbulo às instruções para dar corda num relógio”. Numa ponte área direta entre Fortaleza e Argentina se insinua uma relação muito mais próxima do que o próprio autor tenha imaginado, inclusive, ao nominar o seu livro.

ATO III

Aqui surge uma contradição no interior da própria organização sensível sugerida. Se antes o tempo servia como forma de acessar a subjetividade, agora ele se transforma em uma espécie de vilão, de problema dentro do cotidiano. Isso fica muito claro em Se eu soubesse….

Ainda sim, nesse mesmo Ato, poemas mais líricos surgem, mostrando uma insuspeita habilidade de criar imagens, situações (românticas, sensuais) – o uso da primeira pessoa no início de Estrela, por exemplo, acrescenta uma sexualidade tão evidente quanto bem trabalhada.

ATO IV

O último momento do livro traz um apanhado de tudo que já foi exposto, sem obedecer a algum tipo de lógica – o que está longe de ser negativo, ao contrário, cria um desfecho interessante. Volta a falar sobre o próprio ato da escrita, da relação do poeta com seu objeto de trabalho, do tempo e, mais uma vez, se mostra lírico no trato com alguns temas.

Como leitor, claro, faço minhas escolhas [parece evidente que o segundo Ato foi o que mais me chamou atenção, até pelas referências que carrego], incluindo aí o poema que mais me chamou atenção:

“Poema dos do desencanto

do olho para o chão

não existem teorias

nem estrelas cadentes

uma dor é só uma dor

como uma pedra é só uma pedra

e uma flor é só uma flor”

Transformar o trabalho de Cícero Almeida numa resenha, num texto terceirizado, faz parecer que algum tipo de laço se desfez. E o fato de existir essa sensação demonstra a qualidade do livro, dos versos, da força que o autor tem em se comunicar a partir da escrita. As mãos já não estão nuas.

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