Apontamentos de emancipação feminina em Escola de Mulheres, de Molière

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Em Escola de Mulheres, Molière demonstra a posição da mulher numa sociedade paternalista: ao sexo feminino restava a submissão

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Molière, autor de “Escola de Mulheres” | Arte: Charles-Antoine Coypel

O pai da Comédia Francesa, Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, nasceu em Paris, em 15 de janeiro de 1622 e faleceu, na mesma cidade, em 17 de fevereiro de 1673. Em 1643, fundou a companhia de teatro L’Illustre Théâtre. Dois anos depois, por problemas financeiros, acabou fechando-a. Em seguida, passou 14 anos viajando pelo interior da França, atuando no grupo de Charles Dufresne.

O talento de Molière, porém, estava muito mais em escrever do que em atuar. Suas peças abordavam diversos temas, e foi com a comédia que o dramaturgo destacou-se. Molière satirizava tudo que poderia existir de pior no comportamento humano. Em seus textos, desfilam personagens mesquinhos, invejosos, pedantes, vaidosos, pretensiosos.

Com a escrita afiada, linhas e linhas de crítica e sátira foram redigidas, retratando , como poucos, o “lado b” da sociedade da época (século XVII). Devido a essa verve realista e satírica,o dramaturgo, muitas vezes, foi ameaçado e perseguido pelos setores mais altos da sociedade.

Ao passo que estampava os comportamentos mais baixos de uma classe mais elevada, seus textos dramáticos, além de despertarem o riso e a crítica, acabavam desempenhando uma função transformadora. É assim em sua obra-prima, Escola de Mulheres. Nesse texto, Molière demonstra a posição da mulher numa sociedade paternalista: ao sexo feminino restava a submissão.

A história é sobre Arnolfo, um homem difamador dos casamentos alheios. Cabe a ele zombar de seus amigos casados, chamando-os de cornos, portadores de chifres. Arnolfo considerava os homens muito complacentes com suas belas esposas, educadas e alfabetizadas. Era dele o papel de comentar sobre os adultérios da cidade. Na cena I do primeiro ato, há o diálogo entre Arnolfo e seu amigo Crisaldo, que fica surpreso ao saber que o homem que tanto denegria os casais ingressaria no matrimoniado. Em tom de conselho e crítica, Crisaldo diz:

“Por mim, deixo o mundo falar e não me intrometo, quando certa gente delira com detalhes da vida alheia. Ninguém jamais me viu exultar, ou rir, ou acrescentar qualquer coisa ao que se comenta nas rodas que frequento… Mas contigo, meu companheiro, a coisa é diferente. Te digo uma vez mais- arriscas o diabo. Como tua língua jamais deixou um instante de ridicularizar maridos suspeitos de tolerância e como você se transformou num demônio solto entre os casais, agora tens que andar bem reto ou te matam de ridículo. Pois, ao menor pretexto, todas as vítimas gritarão ao mundo…” (p.05)

Para tal fala, Arnolfo rebate, dizendo que ele não correrá o risco de ser traído e, portanto, não será motivo de risos dos outros. A noiva é Inês, filha de uma camponesa pobre. O solteirão conhecera a jovem quando ela tinha 4 anos. O homem a comprou e tratou de “educá-la” para o futuro casamento. Assim, enviou a criança para um convento, para que crescesse sem malícia e fosse uma mulher inocente. Ainda acrescentou que fazia questão de que Inês recebesse pouca instrução, tornando-a uma mulher simplória e ignorante, pois, segundo ele, mulheres inteligentes eram perigosas.

Arnolfo, no entanto, não sabia que a tentativa de se moldar uma pessoa pode falhar… Em casa, recebe o jovem Horácio, filho de um amigo seu. Os dois falam sobre a cidade, sobre a vida, até que o rapaz, desconhecendo ser Arnolfo o tutor de Inês, revela estar apaixonado por uma moça. Horácio diz:

“Condenada a viver como vive pela estupidez sem paralelo de um grosseirão que a afasta de qualquer contato com o mundo. Mas, ao mantê-la assim, ignorante, ele faz brilhar mil outros atrativos capazes de enlouquecer um homem. Há nela seduções, um não sei quê de ternura- que coração resiste? Mas quase certo que o senhor já conheça essa estrela de amor, de tantos brilhos e encantos. Se chama Inês.” (p. 20)

O tutor não se revela para o moço, deixa que o rapaz fale sobre a jovem e sobre como se conheceram. Na conversa, Horácio acrescenta que tal homem, que mantera Inês num “cativeiro doutrinador”, só poderia ser um imbecil, um paspalhão. Arnolfo escuta a tudo, segurando a raiva e a indignação. Em seguida, sai à procura de Inês e tira a história a limpo. De maneira inocente e pura, sua amada não diz nada muito comprometedor, deixando o coração do homem aliviado. Mesmo assim, ele faz alguns “lembretes” à mulher. O protagonista diz:

“Vou me casar com você, Inês; cem vezes por dia você deve agradecer essa honra bendita, lembrando a baixeza onde você nasceu, ao mesmo tempo que admira minha bondade, que a eleva dessa vil condição de camponesa pobre à dignidade burguesa…O Casamento, Inês, não é uma piada. A condição de esposa traz deveres austeros; não pretendo erguê-la a essa posição para deixá-la aproveitando a vida. Teu sexo nasceu pra dependência. A onipotência é para quem tem barba. ..” (p. 42)

Em tal passagem, fica explícita a visão medieval de Arnolfo a respeito da mulher. Apesar de toda a sua precaução e “catecismo moral”, o protagonista não terá o amor da moça. O homem se depara com uma força grande: a vontade feminina. Até o fim da história, ele fará de tudo para que Inês e Horácio não se enlacem, mas todas as tentativas serão frustradas.

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Escola de Mulheres (Paz e Terra)

Escola de Mulheres, texto feito para rir, tem um mérito enorme: defende uma emancipação feminina em um tempo em que a esposa servia para as coisas do lar, devia obediência e fidelidade a um marido indesejado, Molière, na sua peça, incentiva a instrução da mulher, assim como a possibilidade de escolha amorosa.

Obviamente, tal texto provocou o maior frisson na época. A representação agradou o grande público, mas algumas camadas da sociedade, porém, sentiram-se imensamente ofendidas. O crítico Paulo Rónai descreve como foi a reação de parte das pessoas na época. Lê-se:

“Como um vulgar palhaço podia permitir-se a criticar os costumes e ridicularizar representantes de classes sociais respeitáveis? Seus adversários, entre eles seus concorrentes- os atores e os autores da companhia que ocupava o palco do Palácio de Bourbon- não tardaram a agredi-lo. Censuravam-no por seus plágios, pelo que o enredo e, especialmente, o desfecho tinham de artificial, pela repetição excessiva do mesmo motivo…” (página 23)

Mas nada disso abalou o dramaturgo Molière. Em um tempo em que a figura feminina representava a submissão, a vassalagem; em um tempo em que a capacidade intelectual da mulher não era incentivada, quanto mais reconhecida, Móliere faz de sua escola de mulheres uma crítica divertidíssima e afiada a esses dogmas hipócritas e machistas. Com muita ridicularização e ironia, o dramaturgo fez ruir um pouco da estrutura da repugnante soberania masculina da época.

 

Referências bibliográficas:

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 7ª edição, 2005.
MOLIÉRE. Escola de mulheres. Tradução de Millôr Fernades. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
RÓNAI, Paulo. O teatro de Molière. Brasília: Editora da UNB, 1981.

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