Aprendendo a escrever com Cortázar

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Quando pensei em levar a escrita mais a sério, antes de dar início a meu livro, percebi que seria bom ter alguma orientação externa. Eu não conhecia nenhuma oficina ou curso de criação literária, e não sabia se seria uma boa investir nisso. Hoje acredito que poderia ter refletido melhor sobre essa possibilidade, mas enfim, já foi. Na época, achei que o melhor negócio seria buscar livros ou textos que falassem sobre a técnica de escrever uma história. Peguei alguns manuais de escrita literária e de roteiro para cinema (em geral, norte-americanos) – que, confesso, não me ajudaram muito – e um livrinho que, esse sim, mudou minha forma de pensar sobre minhas criações.

O tal “livrinho” era o volume Valise de Cronópio, coletânea de ensaios e crítica de Júlio Cortázar lançada apenas no Brasil, organizada por Haroldo de Campos e Davi Arrigucci Jr. Nele, há dois textos em que Cortázar aborda mais diretamente a produção de contos (meu interesse mais óbvio naquele momento): Alguns aspectos do conto e Do conto breve e seus arredores. Não há “receita de bolo” neles, claro, mas há diversas opiniões e dicas do autor que podem ajudar muito um escritor ou um pretendente a tal. Lembro-me vivamente de quando li sobre sua ideia de que um conto deve apontar para além de suas próprias fronteiras, do quanto isso mexeu comigo. Posso dizer com segurança que esse foi o turning point (para utilizar um dos termos dos manuais de roteiro, não deixando que sua leitura tenha sido de todo perdida) para mim como escritor: o momento em que meus contos deixaram de ser uma brincadeira para ser um trabalho sério. Ao comparar o trabalho de um contista ao de um fotógrafo, por exemplo, Cortázar diz em Alguns aspectos do conto: “…o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contida na foto ou no conto.”

No mesmo texto há uma exortação que deveria ser colada na porta de entrada de qualquer atividade artística, se essa porta existisse. O autor menciona “contistas” em sua frase, mas obviamente o argumento vale para qualquer trabalho criativo. Olha só: “Os contistas inexperientes costumam cair na ilusão de imaginar que lhes bastará escrever chã e fluentemente um tema que os comoveu, para comover por seu turno os leitores. Incorrem na ingenuidade daquele que acha belíssimo o próprio filho e dá por certo que os outros o julguem igualmente belo.” Eis um ótimo cuidado para se atentar.

Eu me dediquei aos escritos de Cortázar porque admiro muito seu trabalho, mas penso que você pode (e deve) buscar o máximo de referências. Busquei muitas outras, mas sempre me identifiquei mais com o que o autor argentino fala. Embora, vejam só, discordo inteiramente dele em um ponto nevrálgico da escrita: ele repete amiúde que seu trabalho está muito ligado a “receber” os contos, como se ele, em alguns momentos, fizesse quase somente uma transcrição de um conto que “se escreve sozinho”. Você não precisa concordar com tudo que suas referências – sejam elas um livro, um manual, o professor de uma oficina – dizem, precisa apenas encontrar dicas valiosas ali. E, claro, no caso do escritor argentino, ler seus contos e romances é, sem dúvida, também um enorme aprendizado.

 Esses textos e entrevistas podem ensinar muito, mesmo quando não estão com a intenção clara de dar alguma instrução. Em Do conto breve e seus arredores, por exemplo, Cortázar faz uma observação pessoal que é uma dica de ouro: “…sempre me irritaram as narrativas onde as personagens têm de ficar como que à margem, enquanto o narrador explica por sua conta (…) detalhes ou passagens de uma situação a outra.”

Aliás, me parece que muitas vezes é justamente nesses momentos, em que parecemos presenciar uma conversa, que alguns dos grande toques podem aparecer. E nesse sentido recomendo também a leitura de Conversas com Cortázar, coletânea de entrevistas de Ernesto González Bermejo com o escritor. Os diálogos são muito bons, dos quais é possível tirar frases muito enriquecedoras. Uma delas é o que poderia ser tido como o selo de qualidade de um bom trabalho. Como saber se você está no caminho certo? Como saber se essa história que você escreveu está boa o bastante? Deixo o que, pra mim e para o Cortázar (sem me comparar a ele, claro), parece ser a resposta: “Quando vou escrever um conto, sinto hoje, como há quarenta anos, o mesmo tremor de alegria, como uma espécie de amor.”

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