
O enredo
O ano é 1969. Venina, ou apenas Nina, foi criada pelo padre Alceu em Riacho da Jacobina, no interior da Bahia. Para viver com ele na igreja, onde atua como coroinha, ela deve se passar por menino. Sua mãe era uma prostituta, que morreu no parto. A dona do prostíbulo a deixou nas mãos do padre, pois não teria condições de sustentá-la. Assim, Nina, que para todos os efeitos é chamada de Nino, esconde sua verdadeira identidade para ser acolhida.
Nina tem quatorze anos quando, certo dia, chega à paróquia uma mulher grávida, chamada Carolina. Padre Alceu avisa que eles partiriam em viagem para transportar Carolina em segurança até outro lugar. Então, eles empreendem uma trajetória difícil, pelo sertão árido, onde teriam que lidar com os obstáculos impostos pela natureza e por seus próprios semelhantes, lutando pela sobrevivência, tentando encontrar forças para continuar e chegar ao seu destino.
A viagem
Trata-se de uma viagem de descobertas. Especialmente para Nina, é também uma viagem interna. Ela entrará em contato com sua feminilidade, reprimida por tanto tempo, compreenderá um pouco melhor a realidade do país e terá uma revelação sobre a sua origem, questão que tanto a atormenta, já que não conheceu nem pai nem mãe.
Criada sob os preceitos bíblicos, apesar de ter lido também os livros picantes da biblioteca de padre Alceu (afinal, ela está em plena puberdade), a garota aprende tanto sobre solidariedade e trabalho em equipe — com a ajuda de algumas pessoas pelo caminho e com a proteção do padre e de Carolina, por ela ser a mais jovem — quanto sobre a maldade humana, pois não faltam homens aproveitadores pelo caminho, que tentam abusar dela e da grávida, e ameaças da própria polícia.
“Eu estava aprendendo que o mundo não era bonito como a vida eterna das Escrituras e que as pessoas eram capazes de qualquer coisa para conseguir o que queriam” (p. 85)
Segundo padre Alceu, existem lugares onde Deus “não pega”, como em uma estação de rádio com estática. As pessoas ficam abandonadas à própria sorte. Se o próprio padre por vezes duvida da fé, a pobre menina não sabe em quem ou no que acreditar. Mesmo assim, ela se apega ao seu amuleto da sorte: um crucifixo de Jesus negro (como ela), que encontrou na igreja.
A época
A ditadura é o pano de fundo da história. Ao longo do livro, descobrimos que Carolina engravidou de um opositor do governo, um líder do movimento armado contra os militares. Nesse contexto de tensão política, ela deveria ser protegida para não ser usada como arma contra o pai da criança.
No caminho, o grupo encontra uma blitz e Nina presencia a execução de um homem. Ela deseja fazer um enterro digno e não deixar o corpo abandonado aos urubus, mas padre Alceu insiste que eles correm riscos se retornarem ao local da execução.
Em outro momento, mais para o final do trajeto, o padre conversa com um colega de ofício, que comenta que o bispo Jaime foi levado pelos militares e desapareceu. Eles concluem que o homem está morto e o caso foi abafado. Tempos difíceis.
Outros assuntos
A obra também aborda outras questões sociais, como a pobreza do sertão e a violência doméstica. Na mesma época, em contraste com a realidade brasileira, o homem chegou à lua. Nina vê a chegada pela televisão e fica impressionada. Percebemos que o ser humano é capaz de feitos grandiosos e mesquinhos. Além disso, a tecnologia avançava a esse ponto, mas não alcançava todo lugar, pois havia (e ainda há) muita pobreza no sertão.
Outro elemento interessante que aparece no livro é o sincretismo religioso, quando padre Alceu quer usar urtiga contra o mau-olhado e conta lendas do sertão, como a da cobra gigante que teria sido responsável por sujar a terra de sangue, o que explicaria por que ela é vermelha.
O título
Um dia, Nina recebe o convite de um rapaz para visitar o rio com um grupo de outros meninos. Padre Alceu da sua permissão e ela vai, mas com o acordo de permanecer vestida, apenas olhando os outros mergulharem, para não ser descoberta.
Outra razão pela qual Nina sente vergonha de entrar na água é por não sabe boiar. Ela aprende “aquela estranha arte de flutuar” com padre Alceu apenas no final da viagem. Ali, é preciso saber flutuar para adquirir alguma leveza em um contexto desafiador, seguir em frente, apesar de todas as perdas e provações.
Ao longo do caminho, Nina menstrua, se masturba e flerta com um menino da mesma idade. Finalmente, fica livre para ser menina, mulher, adolescente que enfrenta problemas de adulto. Por fim, ela aprende a boiar, não afundar com tantas dores, flutuar na água e na vida.
Conclusão
João Peçanha consegue, com sensibilidade, retratar uma menina na puberdade em busca de sua identidade, no sertão da Bahia, num contexto de violência e miséria. O próprio autor revela, nos agradecimentos, que consultou oito mulheres antes de publicar o livro, ou seja, houve o cuidado com a verossimilhança da personagem. Ao longo do romance, rimos, choramos e torcemos por Nina que, desde cedo, precisa encarar uma realidade dura. É uma leitura importante para conhecermos mais de um Brasil vasto e com um passado aterrorizante, cujas marcas ainda carregamos.
Referência
PEÇANHA, João. Aquela estranha arte de flutuar. São Paulo: Aller, 2022.