Os romances Precisamos Falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver, e A Filha Perdida, de Elena Ferrante, apresentam as ambiguidades da maternidade
A maternidade é a experiência mais intensa na vida de uma mulher. Idealizada pelo senso comum, associada a sentimentos positivos, amor infinito e doação incondicional, na prática ela também implica sensações controversas, grandes sofrimentos e frustrações. O espaço de discussão social contemporâneo permite, se não solucionar, ao menos debater abertamente acerca de certos assuntos tabu, como as ambiguidades da maternidade. E isso se reflete na literatura. Tomemos como exemplo dois romances que tratam dessa questão: Precisamos Falar sobre o Kevin, da americana Lionel Shriver, lançado no Brasil em 2012, mesmo ano da adaptação cinematográfica, e A Filha Perdida, da italiana Elena Ferrante, publicado nacionalmente em 2016. Ambos são narrados em primeira pessoa por “mães desnaturadas”.
No romance de Shriver, a protagonista Eva confessa sua falta de desejo de ser mãe. Ela chega a expor uma lista com os motivos pelos quais não gostaria de ter filhos, que vão de chateação a falta de tempo para si mesma. Posteriormente, considera suas razões fúteis e egoístas. Acaba engravidando, ao ceder à vontade do marido e a certa teimosia/masoquismo próprios. Teme o que está por vir: “praticamente qualquer estranho poderia ter aparecido dali a nove meses. Melhor seria termos deixado a porta destrancada”. Dá à luz Kevin, um menino genioso, que recusa seu peito para mamar, chora o tempo todo quando bebê, demora a falar e a usar o penico, destrói seu escritório, passa vírus para o seu computador de trabalho, atira tijolos em carros na rua, supostamente mata o bichinho de estimação da irmã, até que, aos dezesseis anos, realiza uma chacina no colégio.
Eva tinha razão: a maternidade acabou com sua vida, tal como ela o concebia. Mesmo após o nascimento de Celia, sua filha mais nova, dessa vez escolha sua, tem consciência de que a menina é frágil e delicada demais para sobreviver ao ambiente hostil daquela casa. Ácida, avalia que a filha jamais seria bonita e é excessivamente medrosa. Receia ver em Kevin seu reflexo e reavalia sua própria relação conturbada com a mãe, que sofre de agorafobia. Deixada sozinha e com tempo de sobra para se voltar às reflexões sobre sua trajetória, ao final só lhe resta Kevin, o monstro que ela mesma criou e pelo qual pagou um alto preço.
Leda, a protagonista de Ferrante, não chega a viver situações tão extremas, porém também possui uma história forte. Abandonou suas filhas pequenas durante três anos. Seus motivos não parecem nada nobres: alega que partiu por si mesma, já que se sentia sufocada com o amor pelas meninas, e que voltou também por si mesma, pois não encontrou nada que substituísse esse amor. O enredo acompanha seu período de férias no litoral da Itália. Ela observa uma família na praia, em especial uma jovem que brinca com sua filha pequena, a qual cuida com zelo de uma boneca. Leda se projeta nessa moça, relembra seu passado, suas angústias, sua relação turbulenta com a mãe depressiva, a experiência radical da maternidade.
Suas filhas, já adultas, estão morando com o pai no Canadá. Leda às vezes se sente livre por estar sozinha, mas pensa constantemente nas duas, telefona, sente falta de vê-las. Lembra como afastava as amizades de uma delas, temendo que ela sofresse por ser menos bonita. Não hesita ao listar os defeitos das meninas: mimadas, arrogantes, ingratas. Inveja a jovem mãe, que parece em harmonia com sua criança. Um dia, a menina desaparece. Leda, cuja filha mais velha também sumira na praia quando pequena, ajuda a procurá-la. A garotinha é resgatada, mas perde sua boneca, o que a faz sofrer muito. Leda descobre a boneca em sua bolsa e não entende por que a pegou. Pensa numa maneira de devolvê-la, mas acaba se apegando ao brinquedo. Uma nova oportunidade de ser mãe, mesmo que na fantasia? Afinal, “uma mãe não é nada além de uma filha que brinca”, reflete a narradora.
Eva e Leda se martirizam constantemente por gostarem demais ou de menos de suas crias. Sentem-se, em maior ou menor grau, fracassadas como mãe, culpam-se por não corresponder ao estereótipo de mãe amorosa e companheira. Ambas são bem-sucedidas profissionalmente – Eva é uma agente de viagens que fundou sua própria firma e viaja pelo mundo para escrever guias; Leda é professora universitária de literatura inglesa –, encontram-se em relacionamentos estáveis, porém com homens fracos que pouco conseguem ajudá-las – o marido de Eva se recusa a ver os sinais de uma possível psicopatia em Kevin, enquanto o de Leda não parece entender suas crises nervosas –, e possuem modelos de mãe pouco inspiradores, já que elas pouco se dedicaram às filhas por estar absortas demais em seus próprios problemas. Essas mulheres são, desse modo, tomadas por um inevitável sentimento de perda de identidade após a maternidade. Voltam toda sua energia para as crianças, a ponto de enlouquecer em crises emocionais densas. Julgam-se egoístas por pensar em si mesmas, sendo mães. Talvez de fato não estivessem prontas para o papel. E quem está? Não há manual de instruções para criar filhos.
A sociedade sempre cobra mais do que oferece a seus cidadãos. A pressão social em relação à mulher é ainda maior. Atualmente, a maternidade pode ser uma escolha. Mas as consequências são imprevisíveis e, em geral, desastrosas, como nos mostram Shriver e Ferrante. Nos Estados Unidos ou na Itália, as mães sofrem por não saber a medida certa entre a autopreservação e a preservação dos filhos, as mulheres se angustiam pelo rumo que acabam tomando suas vidas após uma decisão desse porte. Para além das dificuldades concretas da vida e das questões existenciais intrínsecas a todo ser humano, exercer o papel de mãe é algo de extrema responsabilidade, pois trata-se da primeira referência na vida de alguém; um cargo vitalício. A beleza da criação não é desprovida de dor física e emocional. Ainda que os clichês sociais tentem esconder os dramas maternos, a arte os escancara sem piedade.