Ao trazer a própria história a seus livros, o peruano Vargas Llosa rompe e confunde as fronteiras da realidade e ficção.
Como não amar Vargas Llosa?
Millôr Fernandes certa vez disse: “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem.” Na literatura, isso se torna mais evidente ainda – é muito mais fácil, e até preferível, admirar um escritor por sua obra sem conhecer sua vida.
Mario Vargas Llosa é um dos escritores que torna essa máxima uma impossibilidade: mesmo o conhecendo como um velho amigo, é difícil não o admirar (como literato, ao menos).
Entre uma página e outra, ele mistura a ficção com lembranças de sua própria experiência de vida com maestria literária. Intelectual, polemista, ativista político e uma das maiores mentes pensantes da literatura, o peruano é sem dúvida o escritor latino-americano mais importante vivo.
Vida e obra se misturam
Vargas Llosa teria já exposto certa vez sobre a conexão intrínseca da realidade com a ficção e a quase impossibilidade da existência de uma sem a outra. “A ficção não nasce do nada”, teria dito ele certa vez em visita ao Brasil.
Conhecer as obras de Vargas Llosa e desconhecer sua vida pessoal é uma impossibilidade. O peruano laureado com o Nobel possui uma ampla obra inspirada em episódios de sua vida: os ríspidos anos das ditaduras peruanas, as metamorfoses do século XX na Europa e suas loucas frustradas experiências amorosas – ajustados à linguagem literária. Em cada personagem de sua obra, Llosa nos acena pela fechadura.
Em suas histórias, Llosa nos apresenta um pouco de sua autobiografia mentirosa – completamente imaginativa e rigorosamente fiel à sua vida. Uma obra escrita por ele mesmo.
Realidade como matéria-prima para ficção
Usar a própria vida como inspiração para a literatura não é uma técnica exatamente inédita. As lamúrias de Goethe têm trágico reflexo em seu sôfrego alter ego Werther. Dostoievski retorna à Sibéria para narrar seus anos de exílio em Memórias da casa dos mortos. Por que acreditaríamos que Vargas Llosa tenha algo de diferente de todos esses escritores?
Acredito que a ficção se alimenta da experiência. Os escritores se alimentam de uma matéria-prima, que é sua memória, as imagens vívidas […] que por diferentes razões são a partida de uma fantasia, uma ficção.
Mario Vargas Llosa soube, como muitos escritores, alimentar a faminta Quimera da imaginação com o mais doce da vida real.
O universo vargas-llosiano
Desde seu primeiro romance, Llosa vem misturando sua vida e a ficção em uma transa adúltera. Exemplos de sua obra não nos faltam. Em Batismo de Fogo, o escritor trouxe elementos de sua juventude em um colégio militar em Lima para eternizar sua juventude errante entre os jiróns da capital.
Em Travessuras da menina má, o escritor nos convida a sua intimidade no caminhar da Europa do século XX. Na pele de Ricardito, que como ele fora tradutor da Unesco, temos uma visão de mundo “vargas-llosiana” de uma realidade em transformação acelerada. Já em A guerra do fim do mundo, o peruano recria de forma muito pessoal (e original) a Guerra de Canudos, quando ele percorreu o árido sertão na década de 80.
Pantaleão e as Visitadoras
Há até momentos em que realidade e ficção se tornaram inseparáveis para o próprio Llosa. Como ele explica no prólogo de Pantaleão e as Visitadoras, livro que ele escreveu sobre uma experiência própria na Amazônia peruana:
Alguns anos depois de publicado o livro — com um sucesso de público que não tive antes nem voltei a ter —, recebi um misterioso telefonema, em Lima: “Sou o capitão Pantaleão Pantoja”, disse a enérgica voz. “Gostaria de vê-lo para que me explique como soube de minha história.” Recusei, fiel à minha crença de que os personagens da ficção não devem se intrometer na vida real.
Até que ponto os personagens de Vargas Llosa são retrato fiel da realidade ou apenas matéria de sua ficção? É uma pergunta que não se deixa responder muito claramente. Mas apesar de sua “crença”, não foram poucas vezes que a ficção se intrometeu na vida real (e vice-versa).
Mentira da ficção
O auge da intimidade revelada de Vargas Llosa talvez tenha sido Tia Júlia e o escrevinhador. Nessa obra, que rememora “um tempo remoto” na vida de Varguitas, como ele próprio começa o livro e se denomina, Llosa não temeu as consequências de dar nomes e contar problemas pessoais.
Neste livro (que lhe renderia a fama degenerada quando adentrasse a vida política), Llosa conta os detalhes de seu romance com sua Tia Júlia, com quase o dobro da sua idade, com quem casou-se pela primeira vez. Em uma prosa divertida, o livro se tornaria um sucesso literário latino-americano, mas um divisor dentro de sua família, não apenas para o lado da Tia Júlia.
Como conta em outra oportunidade, este livro levou o autor à cisão completa com seu pai, retratado como autoritário, insensível e opositor do casamento de Varguitas com Júlia. Após a publicação dessa obra, uma das mais polêmicas do escritor, os dois jamais voltaram a se falar.
Uma réplica de Tia Júlia
Como réplica, Tia Júlia chegou a escrever o livro Lo que Varguitas no dijo, querendo levar à narrativa as histórias que Llosa deixou de lado, por esquecimento ou estilo literário.
De todo, as omissões não parecem ser um problema para Vargas Llosa. “Acredito que a ficção nos coloca em mundos mais perfeitos,” explica em uma entrevista à Fronteira do Pensamento, “mais belos, mais compreensíveis, que o mundo em que nós vivemos […]”. Sendo a ficção uma parte criativa da própria realidade, não se pode culpar Vargas Llosa de reescrever seu mundo sob sua sensibilidade própria. Afinal, não existiria a ficção com seus sabores agridoces sem nossa crua realidade.
As histórias de Llosa estão muito além da mentira e da verdade. Querer encaixar em seus livros um rigor de uma checagem histórica é envenenar o mais puro que sua imaginação pode oferecer à literatura.
Biografias (des)autorizadas
Além de Lo que Varguitas no dijo, temos outros exemplos da não ficção que tentam trazer mais humanidade (e “veracidade”) ao escritor.
Em Peixe na água, Llosa trata de misturar suas memórias pueris e experiência em que se candidatou à presidência peruana (na qual foi derrotado do dia para a noite para o ditador Fujimori), traçando um perfeito bildungsroman autobiográfico. Suas lembranças mostram o caminho percorrido por um jovem avesso a política que sonhava em ser escritor até o momento de sua candidatura à presidência e consagração como um dos maiores autores do mundo.
A visão política de Llosa transborda nessa obra, deixando claro não apenas seus posicionamentos, mas fatos de sua vida que contribuíram para isso e inspirações para sua ficção. Uma radiografia necessária para entender as primeiras obras de Llosa com influência de sua vida.
O pensamento político de Llosa
Outra visão sobre o mesmo evento foi trazida por Alvaro Vargas Llosa, filho do escritor, que atuou de perto como assessor de imprensa do pai na campanha: El diablo en campaña. Por fim, uma obra menos autobiográfica, porém mais analítica, não pode deixar de constar nesta lista. O feiticeiro da tribo: Vargas Llosa e o liberalismo na América Latina, do argentino Atílio Borón.
Na última, o escritor marxista se dedica a “desmascarar” o pensamento político defendido por Llosa como ativista político. Apesar do objetivo, a crítica se limita (felizmente) em maior parte à política. Como o autor admitiu certa vez, Vargas Llosa “é uma das mais belas penas da língua espanhola”.
Conclusão
É fácil admirar as pessoas que não conhecemos, ainda mais quando essas pessoas se tornam lendas, adjetivos ou autores de suas próprias histórias. Na obra de Mario Vargas Llosa, conhecer sua intimidade não é objeto de afastamento, mas aumento da própria admiração (ao menos literária) por um grande escritor!
As “autobiografias” ficcionais e mentirosas que Llosa nos apresenta em suas narrativas são lição e bênção para toda a literatura.
Referências
Boron, Atilio. O Feiticeiro Da Tribo: Vargas Llosa e o Liberalismo Na América Latina. Autonomia Literária, 2021.
Illanes, Julia Urquidi. Lo Que Varguitas No Dijo, 1983.
Llosa, Alvaro Vargas. El Diablo En Campaña, 1991.
Llosa, Mario Vargas. A Guerra Do Fim Do Mundo. Alfaguara, 2013.
———. Batismo de Fogo, 1976.
———. Pantaleão E as Visitadoras. Editora Objetiva, 2007.
———. Peixe Na Água: Memorias, 1994.
———. Tia Júlia e o Escrevinhador: Romance, 1978.
———. Travessuras Da Menina Má, 2006.
Créditos Homo Literatus
Esse texto foi escrito pelo nosso colaborador Eduardo Reitzs. A revisão é de Evandro Konkel e a edição final de Nicole Ayres, editora-assistente do Homo Literatus.