O que as cartas escondem?
Alguém já sentiu vontade de abrir a correspondência de outras pessoas? É crime, é verdade!, mas a curiosidade aguçada não faz mal e fez dessa vontade o motivo desse texto.
É certo que as cartas estão cada vez menos frequentes, os serviços de postagem buscam outras formas para seus negócios, a ansiedade por notícias de um amigo ou familiar foram substituídas pelo toque do WhatsApp, mas nem com isso a curiosidade em adentrar à intimidade de outras pessoas arrefeceu.
O desejo de esmiuçar a vida de alguém é enorme, principalmente se essa pessoa for um autor de quem gostamos muito. E aí não basta lermos sua biografia, queremos mais!, queremos compartilhar o instante de suas criações, os caminhos percorridos até elas; suas angústias e esperanças.
Nesse sentido, lermos suas correspondências sacia um pouco nossa vontade, além de mergulharmos em sua vida intelectual e não praticarmos nenhum delito.
No entanto, as correspondências dos escritores, dos filósofos e poetas estão longe de servirem apenas ao propósito mencionado acima, por meio delas muitas questões filosóficas foram aprofundadas, ou nós foram desatados nos debates que pensadores, em diferentes épocas, travaram com seus críticos. É exemplo disso o profundo debate travado por Jean-Jacques Rousseau com os filósofos iluministas da segunda metade do século XVIII, sobre o teatro e se suas peças são boas em si mesmas e qual o melhor modelo para uma república, em Carta a D’Alembert. Outro exemplo são as correspondências entre Goethe e Schiller, publicadas em 1828 e que por dez anos de um misto de amor e ódio entre ambos aprofundamo-nos na produção literária um do outro juntamente com eles, sem as quais não compreenderíamos tão bem o classicismo alemão.
O gênero é tão antigo quanto a necessidade humana de se comunicar com seus pares à distância e seu uso na literatura são ricos e variados. Podemos citar aqui as cartas de Sêneca a Lucílio, um tratado filosófico e tão belo quanto os temas nele trabalhados, ou a carta de Pero Vaz de Caminha relatando a chegada dos portugueses a estas terras, bem como inaugurando, de certo modo, nossa literatura; ou ainda Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe.
Nas nossas letras o que mais de imediato nos vem à mente é o cômico livro A utopia burocrática de Máximo Modesto, de Dionisio Jacob, de 2011, todo ele escrito em memorandos de um insatisfeito funcionário público a seu chefe que nunca responde. Por meio dessas cartas comerciais a burocracia asfixia a personagem ao tempo em que vislumbra uma utopia que daria maior eficiência ao serviço burocrático. Já o recente De mim já nem se lembra, de Luiz Ruffato, 2016, é o retrato de uma família, da dor da separação, da doença, da morte e da saudade; é o conhecimento do amor e de uma São Paulo em construção que são rememorados por meio das cartas do irmão mais velho à sua mãe.
Enquanto este texto vai se construindo outros dois livros vêm a lume: um do aclamado Mia Couto, Mulheres de Cinzas, em que a narrativa em tom bastante poético é alternada por cartas de um sargento a seu superior, construindo assim a história de uma guerra sob o olhar do colonizado, uma menina de quinze anos e do colonizador. Cartas a para minha mãe, livro emocionante da cubana Teresa Cárdenas traz no título a ternura do enredo. Uma jovem órfã que ameniza a perda da mãe, o sofrimento de ser criada como bastarda, o preconceito racial e a violência em cartas singelas e diárias à mãe morta.
Para encerrarmos, deixamos a dica de dois outros livros que justificam a escrita deste texto, são
eles: Cartas perto do coração, correspondência entre Fernando Sabino e Clarice Lispector e Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond, de Flora Sussekind. Neles nos aproximamos mais de nossos autores queridos, de seus processos de escrita, de particularidades da nossa literatura e do universo que é a intimidade.