As flores de Rômulo 10/10 – Cecilia Garcia

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Foi a pé até a floricultura. 6 quilômetros de sua casa. Andou sem pressa, mas com muita vontade de chegar. Aí, parou na frente da floricultura. Lá dentro, ela mexia numa muda de ipê. Muda grande, a empreendedora. Lembrou da conversa dela com o tal soldadinho e ficou com raiva. Raiva era melhor do que tristeza, em muitos aspectos. A tristeza, por exemplo, jamais o teria levado dentro da floricultura.

– Pois não, em que…? – ela começou, se virando com um sorriso para atender o cliente e Rômulo viu em um ângulo privilegiado toda aquela simpatia esmaecer. – Rômulo, eu estou ocupada.

– Muda de ipê e você já está terminando. Ocupada é o cacete! – ela ficou encarando ele, sem responder. Não tinha vergonha de mentir para ele. – Ainda não… quer falar comigo?

– Eu pareci receptiva à sua chegada?

– Nem receptiva nem educada. Tem um minuto?

– Rômulo, isso é totalmente sem propósito.

– Tem-um-minuto? – ele disse as palavras todas juntas, repetindo com irritação. Intransigência não estava nos planos.

– Não é questão de ter tempo.           É questão de não ter absolutamente nada que eu precise falar com você. Eu não quero ouvir absolutamente nada do que você tenha a dizer por que eu nem sei se eu vou conseguir acreditar nisso.

– Eu vim aqui pra você me ouvir. E, querendo ou não, você vai me ouvir. Eu andei seis quilômetros até aqui, depois de dias vomitando e sem conseguir comer, estou só o pó. Passei por muita coisa nas ultimas semanas para você simplesmente subir no seu pedestal e nem me dar direito de resposta. – ela não respondeu. – Eu… não quero que você se case. – ela ainda não falou nada. Permaneceu impassível. – Quando a gente ficava aqui, junto, conversando, é como se esse seu soldadinho aí, do Haiti, nem existisse. Eu nunca soube dele porque ele nunca fez falta. Se você for um pouco honesta vai admitir isso.

– Você realmente veio até aqui achando que eu vou desistir de tudo e largar meu casamento para ser a número seis? Tá de piada comigo, Rômulo? Você não tem o mínimo de vergonha? – ela começou falando baixo, mas no final tinha a voz muito alterada e os olhos marejados. Profundamente ofendida, isso sim.

– Você não tem número nenhum. Você nunca teve, Clarice. Eu não tenho mais ninguém. Isso que eu queria que você soubesse. – ela tentou não se abalar com a informação, mas era um choque inevitável.

– Como é que eu posso saber disso? Como é que eu posso acreditar que você deixou de ser quem sempre foi?– silêncio. Ele já sabia onde ela ia chegar. – Entenda só: você nunca vai deixar de ser quem você é. E quem você é pode ter as melhores intenções do mundo, mas vai, em algum momento, me magoar profundamente. A minha escolha é viver com o que eu posso confiar. E eu não posso confiar em você.

Silêncio desconfortável. Rômulo ia começar a chorar de novo, com aquela sensação de que nem sempre ser você mesmo é suficiente e que, inclusive, ser você mesmo pode ser a causa de todos os problemas.

– Se eu pudesse, eu me transformaria em outra pessoa só pra te fazer feliz. Juro que sim. Pelo menos nisso, você pode tentar acreditar? – ela fez que sim com a cabeça. – Acho que é essa a hora que eu sumo daqui, não é?

E saiu de lá. Clarice não podia fazer de conta que não estava acontecendo nada. Mas era como uma de suas mudas: bem-feita. Isto é, era incapaz de crescer para fora de suas raízes.

Pensava na visita de Rômulo quando Fábio, o tal soldadinho, entrou.

– Mudas de que? Carvalho?

– Não, ipê. Prontas, tenho que entregar.

– Nunca vou saber o nome de todas essas plantas. Você tem uma capacidade impressionante de memorização.

– São anos de prática, isso sim. Além do mais, as cores são diferentes. É simples.

Ela ficou em silêncio e sentiu um desconforto de ver que alguém que ela queria tanto que fosse familiar só consegui o status de adorável, como qualquer labrador.

O casamento chegou. Rômulo aprendeu que dias passados inteiramente sozinhos duram bem mais do que 24 horas. Passava em frente à floricultura ocasionalmente. Clarice estava sempre sozinha, também. Nunca tinha tido a oportunidade de vê-la com o tal soldadinho. Sabia que ela ia casar porque, um dia, espiando ela de leve e de longe, viu o vestido de noiva no carro que ela trazia para trabalhar quando tinha entregas grandes. A sensação de ver uma tristeza transformada em realidade sempre atinge de novo. Ele sabia que ela ia casar. Sabia que não tinha volta e não condenava a atitude dela nem por um milissegundo. Mas aquele vestido branco foi sacanagem.

Mas não bebeu. Não fumou. Não ligou para ninguém. Não teve recaídas, nem procurou extravasar os hormônios. Foi para casa e encarou a solidão que ele tinha construído tão bem durante tantos anos.

Mas pesquisou nas igrejas da região para saber quando ela ia se casar. Viu o vestido de noiva no carro exatas duas semanas antes do fatídico dia.

Não estava planejando invadir a cerimônia (lembrou que ela comentou que odiava cenas cinematográficas e que sua vida era muito mais literatura modernista do que cinema hollywoodiano fabricado pela Indústria Cultural). Nem queria fazer nada demais.

Clarice estava pronta, olhando para o espelho. A cada dia, doía menos Fábio ajudava e muito a fazer passar. Era um anjo de paciência, dedicação e carinho. E ela esperava que um dia ficasse quase como uma tendinite algo que nasceu com cara de artrose: dores ocasionais causadas por esforço excessivo ao invés de crônicas que pioram com o tempo e sem cura.

Antes de sair, um jovem chegou ao salão.

– Clarice, é você? – ela fez que sim. – Isto é pra você. – era um vaso de não-me-esqueças. Lindíssimo, bem cuidado. E tinha não um cartão, mas uma carta.

“Cara flor,

Teria comprado um vaso mais bonito se pudesse ter passado na sua floricultura. Não pude e nem tinha este direito. Está surpresa com a minha frase? Vem sem uma gota de ironia. Sei mesmo o meu lugar e o que mereço. Graças a você, sei quem sou e sei o que poderia ter sido, mas nunca fui. Finalmente entendi isso e respeito você. Mais do que tudo, esta é a grande frase do dia: eu respeito você. E respeito tanto que eu abro mão de todo e qualquer amor, obsessão ou paixonite (acho que você riria de me ver falando este termo infantilóide e começaria a falar que eu sou um dominado da cultura de massa) que sinta por você porque eu prefiro isso a colocar seu sorriso em xeque. E desejo, de verdade, que o que quer que eu não possa te oferecer e que é tão importante assim para você, chegue aos teus cinco sentidos. Vou sentir saudade. Muita, muita saudade. Mais do que de todas as outras cinco ex juntas seriam capazes. Mais do que qualquer outra coisa que eu consiga comparar. Mas com tudo se acostuma nesta vida e eu me acostumei com a ideia de que não sou capaz de te dar o que você merece.

É claro, eu não sou tão desprendido assim. Chegarei até lá um dia, em um nível de bom senso que me permita perceber que, muitas vezes, não temos o direito de pedir nada para ninguém. E se você me conhece, sabe que o nome desta flor também é um pedido para você.

Não me esqueças, Clari. Não te esquecerei. Nunca.”

A maquiagem foi refeita, mas todas as ideias permaneceram as mesmas e ela deu os passos em direção a seu soldado labrador no altar. Rômulo releu páginas de um processo, cozinhou suas refeições e virou outras tantas 24 horas sem falar. Outras tantas horas sozinho e outras incontáveis só sonhando, para aliviar a pressão no coração. Ouviu algumas músicas que ela tinha indicado, outros negros bonitos do Blues e Jazz, segundo ela. Coltrane, Miles, Ray Charles e todo esse pessoal tinham a excentricidade que alguém como ela gostaria. Quando ouvia Georgia on My Mind, chegava até a suspirar fundo. Mas ouvir Hallellujah seria um pouco demais. Então, regulando seu limite, ele aprendeu a lembrar dela de forma saudável.

Quando a saudade apertava, ele parava o carro do lado de fora da floricultura e ficava ali, só olhando e aproveitando o direito de observação e admiração que tinha. Eram horas preciosas o suficiente para ele colocar a cabeça no travesseiro à noite e sonhar, mais aliviado do que feliz, até. Ela estava bem. Tinha alguém cuidando dela melhor do que ele seria capaz. E isso era o suficiente.

Clarice trabalhava todos os dias e a vida com Fábio não era, nem de longe, ruim. O que era uma pena, porque nem motivo para justificar qualquer lapso de melancolia no olhar ela tinha. Mas sempre passa. Tudo, sempre. E ela vivia bem. Nada escandalosamente digno de nota. Assistia um blockbuster que mataria um neurônio de tão ruim ocasionalmente e fazia um diálogo imaginário na sua cabeça da defesa de Rômulo de como “Carga Explosiva” tinha mudado o destino dos filmes de ação. Ria, se divertia e muita coisa deixava de ser dolorida pra ser riso apenas.

Mas quando a saudade apertava, ela sempre via aquele carrão, grande e preto do lado de fora de sua floricultura e podia se lembrar de uma vida que nunca seria dela, mas que funcionava tão bem no plano das ideias que estava, quase sempre, nos seus sonhos.

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