As flores de Rômulo 8/10 – Cecilia Garcia

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Ele foi, mas, surpreendentemente, não conseguia parar de chorar. Estava profundamente ferido e magoado, mas ainda não sabia com o quê. Ligou para a esposa e avisou que teria uma viagem repentina a negócios – que negócios pode ter um promotor? Apenas Fabiana poderia acreditar nisso sem protestar – e que passaria algumas noites fora. Foi até um hotel, pegou as chaves de uma suíte e se jogou na cama, tentando entender sua própria reação, tão intensa e nova.

Ficava lembrando e fazendo um balanço da noite:

1) Clarice ia se casar com quem quer que fosse que tinha vindo do Haiti. Um soldadinho. Soldadinho de Chumbo, ele pensou, venenoso. Soldadinho de Chumbo, bocó e com uma perna só. Ele morria no final do conto. Era uma analogia bastante confortável. Incrivelmente, ele só se lembrou de Rafaela. Alguém tão puro e casto como ela deveria se relacionar com o soldado perfeitinho.

2) Ela não queria vê-lo. O acusou de ser um oportunista, alguém que só suga as pessoas. Ele não tinha nada a seu favor que pudesse ser usado como defesa. No fundo, concordava com ela e se sentiu terrível de ver que ela sabia que ele mentia.

3) Ela tinha dito que se importava com ele. Que não queria que ele mentisse. Que queria que ele fosse capaz de falar a verdade para ela. Essa era a parte mais difícil. Embora fosse bom que ela se importasse com ele, ficar sem mentir era algo que ele nem pensava ser possível.

Rômulo mentia. Alguns bebem, outros são dependentes de cafeína e tem quem fume crack. Ele mentia. Ligava para um e dizia estar com o outro, inventava reuniões e julgamentos. Nunca deixar de fazer o que queria era o grande prazer que sentia com seu vício. O efeito colateral era que nunca pensava muito nos afetados. Mas era um efeito colateral bem sutil até então: nunca tinha sentido culpa.

Fabiana, por exemplo. Passava boa parte do tempo sozinha. Trabalhava, claro, mas de resto, ficava sozinha. Não era dali, a família vivia a umas duas horas de distância. Ficava completamente ilhada no apartamento caro e bem-decorado dos dois.

Ele não só nunca tinha pensado nisso como notou não sentir culpa.

Raquel tinha, aparentemente, largado um namorado de anos em troca de uma noite por semana com Rômulo. O tal fulano tinha se matado depois, por que eles planejavam se casar e ele fora abandonado sem um motivo claro e específico.

Ele também não tinha ponderado isso e simplesmente não dava a mínima para o fato de ter sido tão valorizado por ela e de, indiretamente, ter sido o responsável pela morte de alguém.

Rafaela tinha vindo para a cidade para passar uns meses em um curso, mas decidiu ficar permanentemente por causa dele. Trancou a faculdade no interior, fez cursinho de novo, prestou outra faculdade e se matava para banca os custos de uma cidade muito mais cara do que a sua natal só para ficar com ele.

Isso tampouco o sensibilizava.

Rúbia nunca conseguia sair das dívidas e afins, respirando sua obsessão por ele e se esquecendo de estabelecer uma vida de fato. Pagava o mínimo do cartão de crédito há anos e ganhava apenas para frequentar os lugares caros que Rômulo escolhia de forma proporcional: com roupas bonitas, maquiagem cara e visual produzido.

Ele não podia ser mais indiferente.

Romena negava, mas seu doutorado tinha passado de transitório para fixo, pouca era sua dedicação. Se escondia atrás da sua capa de intelectualidade, mas nutria um sentimento que desafiava sua racionalidade e responsabilidade.

Nada disso o tocava. Absolutamente nada.

Só Clarice. Clarice, sim. A tristeza, a melancolia que ela carregava no olhar ao dizer sua decepção com ele e a franqueza de falar que sabia que ele estava transando com outra ou cancelando compromissos com argumentos fajutos. Seu pequeno negócio e a disponibilidade que sempre tinha para ele, genuína, íntegra e honesta. Sua inteligência e cultura refinada. O amor pelas flores e sua delicadeza no trato com as pessoas, como se cada uma só precisasse de atenção e carinho. Sua sinceridade cortante e despreocupada e seu sarcasmo refinado, capaz de rir dele sem dó nem piedade, com uma acidez que o queimava, mas o deixava pedindo mais.

Isso era mais tocante do que todas as outras cinco juntas.

E ela ia se casar. Nunca mais o veria. Não queria, sequer, falar com ele. E prontamente o proibia de ficar perto dela. Não tinha como definir o que era pior.

Em dois dias trancado no quarto, pensando, sem falar com ninguém, Rômulo se sentia como um viciado em heroína. Tudo o que conseguia pensar era em ir à floricultura e pedir pra ela parar de bobagem. Eles sempre – ou quase – tinham se entendido bem. Conversavam. Ele só conseguia ser ele mesmo com ela. Ela sempre teria ele como ele era, exclusivamente. E isso devia ser algo bom ou relevante. Não podia não significar nada. Não é como se ele pretendesse largar a vida que tinha, mas sim precisava mostrar pra ela que ela não era igual a todas as outras, que o que ela tinha era exclusivo.

No terceiro dia, ainda com as mesmas roupas, sem fazer a barba e descabelado, ele resolveu ir atrás dela.

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