As heroínas de Jane Austen

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As heroínas de Jane Austen
Jane Austen retratou conflitos de classe  ao questionar a figura da mulher nas relações sociais. Elaborou críticas à sociedade inglesa através de personagens femininas que não permitiam que os costumes e preconceitos trancafiassem sua liberdade
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Jane Austen

Jane Austen (1775-1817) viveu em uma sociedade inglesa marcada pelas Guerras Napoleônicas, pelo crescimento do Império Britânico e pela revolução industrial e econômica, e relegava à mulher o papel no seio familiar, sendo pressionada e confinada para casar. Nesse cenário, ainda não havia movimentos organizados por mulheres – era ínfima a quantidade delas que questionavam direitos e tradicionais – e a primeira onda do feminismo somente se deu no final do século XIX e início do século XX. Contudo, a sina imposta às mulheres já passou a ser discutida nas histórias da escritora, que não discorreu exclusivamente sobre amor, constituindo-se seus escritos verdadeiros romances de combate, questionadores do estereótipo feminino, das tradições aristocráticas e dos dilemas morais e ideológicos que a mulher enfrentava. A linguagem nunca é neutra e sempre perpassada por relações de poder. Desta forma, embora a romancista não promulgasse mudanças nem defendesse abertamente os direitos da mulher, ela incumbiu o leitor a reflexão acerca de temas polêmicos para sua época, e também para as gerações futuras, ainda não emancipadas de muitas das problemáticas que ela abordou. Vale sublinhar que este ensaio não fará classificações das suas personagens sob a ótica  da crítica feminista, uma vez que esta foi germinada apenas nos ares da década de 1960, mas sim sob a ótica dos estudos sobre feminismo, revelando o vanguardismo de sua prosa.

Há quem retruque que seus romances são românticos e ingênuos por serem, invariavelmente, sobre histórias de amor que restringem a mulher ao matrimônio, mas a escritora foi além dessa perspetiva. Revolucionária no modo como escreveu seus romances, retratou conflitos de classe, contradisse as convenções, questionando a figura da mulher nas relações sociais, elaborando críticas à sociedade inglesa através de personagens femininas que não permitiam que os costumes e preconceitos trancafiassem sua liberdade, indagando, de um modo geral, sobre os problemas das mulheres de seu tempo. Fortes, inteligentes e autoconfiantes, essas personagens não admitiam o casamento como tábua de salvação. O fato das heroínas de Austen casarem-se por amor, porém, não expressava a época em que ela viveu. A escritora não defendeu, contudo, que elas devessem ser guiadas somente por suas paixões, mas buscassem o equilíbrio entre a razão e sensibilidade enfatizando, pois, a necessidade de uma nova mulher.

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As heroínas de Jane Austen no cinema.

Em Orgulho e Preconceito, Austen nos mostra o quanto a primogenitura masculina  tornava a condição da mulher ainda mais vulnerável, pois as leis inglesas daquele século concedia o direito de propriedade exclusivamente para o homem. Quando o patriarca morria, na ausência de herdeiro homem, quem ficava com a herança era o parente masculino mais próximo que, no romance, Mr. Collins ocupou o posto. E eis o motivo pelo qual a mãe das irmãs Bennet preocupa-se tanto em encontrar casamento para as filhas – para as famílias abastardas, o casamento era uma possibilidade de aumentar ainda mais sua renda, mas para as mais pobres, em que se enquadra a das Bennet, ele era uma forma de ascensão social.  Nenhuma das filhas, porém, aspirava por uma relação amorosa por motivos econômicos.

Elizabeth Bennet (a minha predileta), de personalidade forte e inteligência ousada, discute em muitas partes da obra a educação outorgada às mulheres. Em um diálogo com Caroline Bingley, ela retruca diante a afirmação desta sobre o que uma mulher precisa saber/fazer para ser considerada prendada:

“Nenhuma mulher pode ser considerada prendada se não superar em muito o que se costuma fazer. Deve ter um conhecimento profundo da música, do canto, do desenho, da dança e dos idiomas modernos para merecer a qualificação. E, além de tudo isso, deve possuir algo no modo de ser e na maneira de caminhar, no tom de voz, no trato e nas expressões, para que a palavra não seja merecida senão em parte.”

Lizzie, em seguida, fala duvidar da existência de uma mulher com todos esses atributos. Austen critica a educação dada à mulher baseada em um comportamento pomposo e dócil que, apesar das múltiplas habilidades artística, não permite reflexões sobre sua vida e a sociedade – as mulheres deveriam permanecer passivas e fracas. Um traço marcante na descrição de suas personagens femininas é sua densidade psicológica, retratando os embates internos das personagens – a complexa relação entre os desejos das mulheres e os imperativos sociais, destacando as contradições do processo de amadurecimento feminino. Assim, a ênfase nas personagens de sua prosa não está em sua estética, mas, sobretudo, no desenvolvimento intelectual, bem expresso quando Elizabeth Bennet protesta:

“[…] não me considere uma mulher elegante que tem a intenção de atormentá-lo, mas uma criatura racional falando a verdade do coração.”

A escritora delineou uma multiplicidade de casamentos em seus escritos, porém, os dilemas que as personagens viviam eram muito semelhantes. É  notório que as personagens masculinas buscaram em muitos momentos explicitar seu privilégio econômico, seu status social, sua mobilidade e seu poder de chefiar. Entretanto, o poder masculino é  menosprezado e reiterado em dados momentos, a exemplo da recusa de Elizabeth diante às propostas de casamento de Collins e de Darcy (em uma primeira tentativa), embora ambos tenham enfatizado as vantagens econômicas que isso traria.

Logo no ínicio da obra, a protagonista adentra, gradativamente, numa história de amor e ódio e numa série de diálogos espirituosos com Darcy, dois personagens que, no seu orgulho e preconceito, são duramente iguais. Ele a desdenha por ela ser uma ameaça ao seu conforto social e sentimental;  ela o desdenha perante sua arrogância e prepotência que, no decorrer do livro, nota-se que se trata de um meio de defesa quando os fantasmas adormecidos que habitam seu coração são despertados por Lizzie, e também é decorrência dos conflitos de classe da sociedade da época, uma vez que a protagonista da trama é de um estrato social inferior ao dele.  Mr. Darcy, nos capítulos derradeiros do romance, já demonstra um tom gentil e afetuoso ao pedir Lizzie em casamento, fazendo jus aos finais clichês (um clichê só é clichê porque dá certo, não é mesmo?) felizes para sempre de Austen, porém, com um diferencial – a felicidade aqui não é forjada por convenção, tradição ou dinheiro.

Lizzie Bennet é um exemplo paradigmático das heroínas de Austen, que dá um grito de liberdade e poder às mulheres, quebrando barreiras sociais e se opondo à ideologia dominante. Curioso é que a consciência da identidade feminina é construída por Austen em seus romances quando ela permite às suas personagens o direito de rir. Elas não se insurgem diretamente aos mandos sociais, mas zombam, ironizam e riem. Não por acaso Elizabeth Bennet faz uma defesa do direito ao riso e sua necessidade.

Muitos outros protestos feministas podem ser identificados nos romances de Jane Austen. Fanny Price, no Mansfield Park, vive na casa dos tios, e recusa o casamento com Henry Crawford devido sua condição abastada. Em Persuasão quando Anne Elliot indaga o Capitão Harville sobre quem ama por mais tempo, o homem ou a mulher. Harville responde:

“Não creio ter aberto um único livro em minha vida que não falasse da inconstância feminina. Canções e provérbios sempre falam da volubilidade feminina. Mas talvez me dirá que foram escritos por homens.”

Ao passo que Anne replica:

“[…] por favor, não faça referência a exemplos de livros. Os homens levaram todas as vantagens sobre nós ao contar sua própria história. […] A pena esteve em suas mãos. Não posso admitir que os livros provem alguma coisa.”

Ora, em um mundo cuja história tenha sido escrita desde tempos imemoriais por homens, obviamente, teríamos nos livros um retrato da visão masculina dos fatos, e Anne já estava convicta disso. Austen se emancipa dessa tradição e dá voz às mulheres em suas narrativas, reproduzindo situações do dia-a-dia e tecendo, sutilmente, críticas à sociedade inglesa de seu tempo.

Em um diálogo contido na obra incompleta The Watsons, Emma Watson discute com sua irmã mais velha, Elizabeth, o casamento como válvula de escape, seja da pobreza, seja de uma família que não lhe agradava:

“Ser tão inclinada ao casamento – perseguir um homem por causa de uma situação – é algo que me choca; não consigo entender. A pobreza é um grande mal, mas para uma mulher educada e de sentimento, não pode ser dos males o pior. Eu preferiria ser professora em uma escola – e penso que nada poderia ser pior do que me casar com um homem de quem não gosto.”

A autonomia da vontade é característica marcante de suas heroínas. Ao abordar a temática do matrimônio em seus principais romances, ela encara os embates de sua realidade, suscitando discussões sobre os papéis sociais da mulher e as severas regras a que eram (?)  submetidas. A voz de Jane Austen ainda ecoa na contemporaneidade, como uma das escritora inglesas mais importantes de todos os tempos.

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