As Meninas e o estiramento da realidade

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Sobre aquilo que abruptamente nos coloca de volta na realidade da qual tentamos constantemente escapar

Lygia Fagundes Telles/ reprodução
Lygia Fagundes Telles/ reprodução

Inúmeros são os relatos, reais ou ficcionais, sobre as atrocidades que se passaram nos famosos “porões” da ditadura militar brasileira. Narrativas e textos críticos ou sociológicos, que buscam esmiuçar e expor cada mínimo detalhe violento do que se passou nos bastidores desse período. Sobre as vítimas mais diretas dos torturadores e da ditadura como um todo muito já se falou, e muito ainda há de ser dito. Muito já se disse e escreveu também sobre a parcela da população que, supostamente, não sabia/compreendia o que se passou no país durante os anos de chumbo. De crianças a idosos, passando por membros das parcelas mais abastadas da sociedade aos mais humildes, e de vidas mais discretas/isoladas das grandes metrópoles econômicas e políticas.
Mesmo após tanto se escrever e estudar os mais diversos perfis que se envolveram, ou deixaram de se envolver, nessa luta diária e violenta, Lygia Fagundes Telles parece ter encontrado se não uma nova “camada social”, um novo jeito de olhar a juventude daquela época. Em As Meninas, a autora expande a narrativa para além da esfera ditatorial na vida pessoal dos jovens do período. Lygia focaliza ainda mais o interior de suas personagens, indo o mais adentro que sua estrutura narrativa lhe permitiu, explorando cada pensamento sombrio e imediato que ocorre a suas meninas.
Lia, Lorena e Ana, três jovens universitárias que moram em uma espécie de convento/pensão em São Paulo, no início da década de 70. São todas meninas de dezenove ou vinte anos que, como a maior parte da juventude estudantil daquela época, estavam atoladas até o pescoço em mentiras, segredos e uma asmeninasvida “paralela” pela qual deviam zelar.
“Seu foco se concentra na vida cotidiana, nas pequenas opções que costuram a existência ainda que a sombra pesada da vida política se faça presente em cada linha […]” [1]
É desse foco diferenciado para a literatura da época que Lygia Fagundes Telles cria toda a magia que permeia o romance, e o torna ao mesmo tempo tão simples e tão emudecedor. Não é o caso de o leitor penetrar no mundo íntimo das três meninas; acontece que é apenas isso que há. Todo o fervor político, as guerrilhas e o contexto violento do qual já se tem conhecimento, é uma camada pesada que está presente em todos os pensamentos, em todas as ações, mas de forma coadjuvante. Está ali apenas para dar o clima soturno da época, sem pesar o suficiente para acabar com as cotidianidades das personagens.
Acompanhamos o mundo romântico de Lorena, eternamente aguardando o telefonema de seu amante casado; a vida não convencional de Ana Clara em meio a sexo casual e drogas; e a luta de Lia (Lião) para se encontrar com seu namorado, um preso político prestes a ser solto em uma troca entre os guerrilheiros e o governo. E não sabemos nada além daquilo que seus pensamentos nos revelam, estamos inteiramente confinados a suas ideias tendenciosas, suas opiniões momentâneas umas sobre as outras, seus desejos repentinos e efêmeros, suas preocupações diárias fúteis. Isso tudo intercalado com longos diálogos sobre a vida, suas escolhas e erros, sempre rasos e cheios de referências que escapam aos leitores – se não reveladas pelos pensamentos imediatos das protagonistas. Assim correm os dois dias narrados por Lygia em sua obra.
Contudo, há um fio paralelo, um movimento interno das personagens que passa despercebido por elas – e quase, para o leitor. Está entre esse mundo interno e a realidade violenta lá fora, no limite que seus jovens pensamentos nos permitem apreender; e aquilo tudo que já se sabe, por outras fontes, estar acontecendo na cidade. As meninas vão aos poucos sendo esticadas, sutilmente levadas ao limite de seus próprios “eus”. Os constantes conflitos morais internos e familiares, o rompimento com tudo que seria esperado delas – social e familiarmente -, a luta por si, suas vontades e seus amores; esse retrato 3×4 de uma geração que tomou como missão desestabilizar todos os padrões até ali aceitos e passados adiante. O estar e não estar de acordo, no caso de Lia e Lorena, e o ser nada no caso de Ana Clara, tudo isso se rompe e acaba no final trágico e imprevisível de Telles.
A morte de Ana por overdose, bem na cama do quarto de Lorena no convento. A jovem símbolo de todo o desapego e da rebeldia, a única que “cumpriu” com as expectativas de sua geração para si própria; aquela que era peça solta dentro do romance faz sua aparição final para unir todas as pontas soltas, e finalizar todos os rompimentos. Lia estava prestes a concretizar sua fuga de encontro a seu namorado, Lorena já voltara a fixar seu pensamento na ligação de seu amante que jamais acontecia. Tudo entrava direitinho na ordem rebelde que deveria, até o momento da morte.
Como uma explosão interrompida, as duas protagonistas restantes entram como que em um ruído branco, desligam-se de toda a realidade a sua volta para decidir o que fazer com o corpo. A luta pela manutenção das aparências, o manter-se inocente e puro aos olhos dos outros, a incapacidade de empatia: tudo retorna em um jorro alucinante de incertezas, xingamentos e até orações. O símbolo da libertação está morto, as sobreviventes lutam para não o reconhecer como real. Abandonada em uma praça, Ana Clara faz sua última aparição; Lia e Lorena, ainda com sentimento de fuga, retomam seus planos.
Lygia nos leva ao limite junto com as meninas. Nos faz questionar até que ponto a negação de uma realidade, ou a luta pela fuga ou por um rompimento, nos altera sem que ao menos possamos perceber. A restrição gradual do pensamento, que passa a abarcar apenas o que nos interessa, nos conforta, cria em nós o movimento contrário de estiramento, de distanciamento ilusório da realidade. Até que tudo estoura em frieza palpável, tornando impossível continuar envolto unicamente naquilo em que se quer crer.
[1] Posfácio de Cristovão Tezza à edição revista pela autora (2009) da Companhia das Letras.

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