Trotsky quase não existe. Fora do círculo partidário-universitário, o herói da Revolução Russa é um célebre desconhecido, menos do que ninguém. De fato, até no pequeno grupo onde ainda é mencionado sempre se evita o homem real, frustrado, expulso dos sonhos por um poder que não conseguiu enfrentar. No entanto, é essa personalidade que interessa ao escritor cubano Leonardo Padura, o que deu origem ao livro O homem que amava cachorros, lançado recentemente pela Boitempo.

Remando contra a maré (e não rumo à Miami), o excelente romance O homem que amava cachorros, de Leonardo Padura, constrói o cenário dos dois assassinatos de Trotsky. O primeiro, que destroçou sua carreira política, foi o banimento da União Soviética, a então Pátria dos Trabalhadores, que o levou a se exilar em vários países. O segundo, foco da narrativa, foi consequência do golpe de picareta que abriu seu crânio quando era asilado no México em 1940.
O ritmo do livro é característico dos bons thrillers: Padura aproxima a vítima do assassino passo a passo, num grande tabuleiro global, cruzando destinos em eventos como o início do stalinismo e a ascensão do fascismo na Europa. Com riqueza às vezes entediante de detalhes, o cubano retraça a peregrinação inútil e angustiante de Trotsky por Turquia, Noruega, França e América do Norte, mas acerta mesmo na descrição do aprendizado assassino do seu executor, o espanhol Ramón Mercader.
Se Trotsky quase não existe, Mercader foi só um fantasma, hoje completamente exorcizado. Do jovem idealista recrutado pela polícia secreta de Stalin enquanto lutava na Guerra Civil Espanhola (conheceu Orwell, Hemingway não) até o surgimento do espião frio sedento por cumprir seu dever com o proletariado mundial, Ramón Mercader funciona como uma metáfora. É a imagem da utopia socialista metamorfoseada numa burocracia cruel, da zona cinzenta entre sonho e pesadelo, do medo que caminha ao lado da existência.
E Padura entende bem disso. Tendo passado a vida toda na ilha de Fidel Castro, conheceu em primeira mão o terror ideológico, a escassez, as crises que os programas comunistas vendiam como etapas necessárias à construção do novo homem:
“Foram anos quase irreais, vividos num país escuro e lento, sempre quente, que desmoronava todos os dias, embora sem chegar a cair nas cavernas da comunidade primitiva que nos ameaçava.”
Num processo talvez autoficcional, é um narrador cubano que conta a história, intercalando o relato do assassinato de Trotsky pelo espanhol com sua própria experiência. É interessante o paralelo entre os três: são indivíduos quebrados, cheios de remorsos, parecem esmagados pelo rolo compressor que a História sempre reserva à humanidade. Seja a tirania dos regimes autoritários, seja os desastres sociais do capitalismo, seja o consumismo emburrecedor, sempre existe uma estrutura distorcida que reduz os seres humanos à passividade, à escravidão inconsciente. Lutar contra isso é desobedecer, não se filiar a dogmas. Trotsky e Ramón Mercader são, antes de qualquer coisa, produtos do medo que baseia todo regime político, descartados pela perda do valor de uso. Esquecidos pela tendência da espécie a querer apagar seus pesadelos com outros.
O romance exige inteligência na leitura. Aqui, o leitor vai encontrar crueldade nos ideais mais elevados, incerteza nas pessoas mais declaradamente coerentes, angústia e medo, além de uma envolvente trama política. Também, com alguma disposição, pode refletir a respeito do destino fatal das ambições humanas e, principalmente, sobre o risco de sonhar.