O colar de veludo, de Alexandre Dumas, registra as peripécias de um jovem artista alemão diante do caos vivido na sociedade parisiense, pós-revolução francesa, nos tempos da guilhotina, e as tentações mundanas que o corrompem.
Meu primeiro contato com a obra do escritor francês Alexandre Dumas não foi com a leitura de O conde de Monte Cristo, tampouco com Os três mosqueteiros, porém, com um romance curto, de cento e poucas páginas, não muito conhecido pelo grande público, editado no Brasil, em versão de bolso pela L&PM, com tradução de Marina Appenzeller, intitulado: O colar de veludo.
Ao tomar a leitura do livro, a linguagem rapidamente me agradou por ser de uma leitura extremamente leve e palatável, sem os atropelos rebuscados da língua que permeiam a natureza de certos clássicos. Todavia, mesmo apresentando uma linguagem aparentemente simples, Dumas não deixa de ser majestoso e elegante em suas palavras, que ilustram com ótimo desempenho a proposta onírica e, por vezes, poética da trama, que tem como cenário a velha Paris pós-revolução francesa. Neste período, o país era tomado por uma política radicalista que funcionava aos moldes Cortem a cabeça!. Os presos da época eram condenados e, respectivamente, assassinados na famosa Place de la Révolution, decapitados, aos olhos do povo, numa guilhotina.
Hoffmann é um jovem artista alemão da pequena cidade de Mannheim que, ao ganhar uma aposta, consegue dinheiro suficiente para fazer a sua tão sonhada viagem à cidade luz. Porém, apesar do pacto de fidelidade feito, antes de partir, com a sua noiva Antonia, a filha de seu professor de música, o rapaz acaba se apaixonando perdidamente por uma bela e misteriosa bailarina que ele conhece durante um espetáculo no Théàtre de la Saint Martin, em Paris. E é a paixão do rapaz por Arsène, a dama do colar de veludo, e a sua entrega pelos sentimentos mundanos, provocados em sua estadia na cidade, que resultarão num desfecho trágico e surpreendente.
(…) Não tinha certeza absoluta de que o espetáculo ao qual assistira se apagaria de sua mente por esse meio, mas queria pelo menos proporcionar distração a seus olhos e provar-se que ainda havia no mundo gente que vivia e ria.
Encaminhou-se portanto à Ópera; mas a ela chegou sem saber como. Sua determinação caminhara à sua frente, e ele seguira-a como um cego segue seu cão, enquanto sua mente viajava por um caminho oposto, por impressões totalmente contrárias. (Trecho do capítulo O julgamento de Paris, Pág. 71)
Mesmo em terceira pessoa, o escritor constrói toda a ação da trama sob a ótica do jovem artista alemão, e que no início da narrativa é descrito como: (…) cujas matemáticas mentais nem sempre estão em equilíbrio perfeito.
Tal conflito entre a realidade e a imaginação que norteia a psique do protagonista é evidenciado ao longo da narrativa, dando ao romance de Dumas, publicado em 1850, um caráter do que viria a ser chamado, posterior pelos vanguardistas franceses, na década de 20, de ficção surrealista, embora o romance também trabalhe com a crítica de costumes.
Entorpecido por uma paixão fulminante e tentadora pela famosa bailarina, que é custeada por um amante da alta aristocracia francesa, Hoffmann resolve seguir os conselhos de seu amigo alemão Zacharias Werner, apostando no jogo para obter uma grande bolada em dinheiro que, de fato, o faça ser correspondido por Arsène.
Cada palavra do amigo tornara-se, por assim dizer, visível e palpável: estava ali brilhando sob seus olhos, murmurando em seus ouvidos.
De fato, de onde Hoffmann poderia extrair ouro se não da fonte do ouro! A única chance de satisfazer um desejo impossível não fora encontrada? Ah, Meu Deus! Werner dissera. Hoffmann já não fora infiel a parte de seu juramento? Que importância teria ele descumprir a outra?
(…) O demônio do jogo é como Satanás: tem o poder de levar o jogador até a montanha mais alta da terra e de mostrar-lhe dali todos os reinos do mundo.
Ademais, que felicidade, que alegria, que orgulho, quando Hoffmann voltasse à casa de Arsène, à mesma saleta íntima da qual o haviam expulsado! Com que desdém supremo esmagaria aquela mulher e seu terrível amante quando, como única resposta a essas palavras: O que o senhor veio fazer aqui? ele deixasse, novo Júpiter, cair uma chuva de ouro na nova Dânae! (Trecho do capítulo O tentador, pág. 123)
Em outra cena, Dumas salienta o domínio diabólico do jogo sobre o homem, quando Hoffmann resolve participar de uma aposta numa jogatina no número 113, localizada em Palais-Royal:
Para o jogador, tudo está morto: família, amigos, pátria. Seu horizonte são as cartas e a roleta. Sua pátria é a cadeira onde está sentado, o tapete verde em que se apoia. Se fosse condenado à fogueira como São Lourenço e o deixassem jogar, aposto que não sentiria as chamas! E que nem se viraria.
O jogador é silencioso. A palavra de nada lhe serve. Joga, ganha, perde. Deixa de ser um homem: é uma máquina. Por que falaria?
O ruído que havia nos salões não provinha portanto dos jogadores, mas dos crupiês que pregavam o ouro e gritavam com a voz anasalada:
— Façam seus jogos.
Naquele momento, Hoffmann deixara de ser um observador, a paixão o dominava em demasia; não fosse por isso teria uma série de estudos curiosos a fazer. (Trecho do capítulo O número 113, pág. 131)
O colar de veludo, de Alexandre Dumas, é um romance que tem todos os méritos para ser definido como um “grande clássico” propriamente dito, merecendo ser (re) descoberto pelo leitor brasileiro, traçando um panorama contundente — com ingredientes necessários para compor uma boa estória — sobre a caótica atmosfera parisiense de seu antigo século XIX.
O colar de veludo
Alexandre Dumas
Editora L&PM Pocket
208 Páginas