Às vezes você precisa de muito tempo para escrever feito você mesmo

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Letras são notas, nós as bagunçamos querendo escrever algo que soe bom

Miles Davis, um dos mestres do Jazz
Miles Davis, um dos mestres do jazz

Escrever não é tão diferente de tocar um instrumento musical. As letras no teclado do computador são notas, que bagunçamos querendo escrever com boa sonoridade. No mínimo que a gente queira mostrar para outra pessoa, e na melhor hipótese o que foi criado sem pretensão pode ser importante para mais gente.

Uma das muitas dúvidas é o que importa para mais pessoas. Quando um texto nosso cai nas graças de uma galera é só alegria. Melhor ainda se voar pela internet em dúzias de  compartilhamentos espontâneos – podemos alimentar a ilusão de que a nossa singela nota é tocada por aí, sem precisar se vender para que a ideia não circule apenas entre os nossos mais próximos. Se o texto soa nosso, a satisfação é infinita e nem o céu é o limite.

Provavelmente quem passou a melodia (textual) adiante nem ligue se é tão ‘autoral’ assim. É a mesma pauta de 20 anos atrás revisitada, é novo mesmo, não é novo mas quem fez tentou algo diferente da média então vale o esforço, era mais do que eu queria ouvir, me ajudou a relaxar, não é meu tipo de coisa mas vale pela descarga de adrenalina, isso é profundo e me trouxe uma experiência nova, não é tão bom mas eu precisava de uma dessa para relaxar e ok; sei lá o que passa na cabeça de cada um. Os voos livres do material e a falta deles podem tirar o foco de se criar algo tão próprio.

Quem busca criar uma voz autoral descobre rápido o quanto esse processo é demorado e até ingrato. É fácil largar um rascunho em favor de uma ideia que atinja mais gente, se isso realmente for garantido (doce autossabotagem), e também é abandoná-lo por achar que nem toda reescrita o salva – e completamente do além alguém nos dizer que a ideia presta e precisa ser lapidada. E às vezes uma nota boa no mês passado não satisfaz hoje, talvez porque quem a compôs não quer repetir o estilo, mudou completamente de prática e mentalidade, ou vá saber o nome da mudança.

É tudo subjetivo, desde o porquê escolhemos tal caminho dentro de uma pauta que recebemos, até a afinação usada quando a página está em branco e somos maestros de nós mesmos. Miles Davis disse uma frase genial sobre a busca meio idiota (talvez idiota e meio) por uma voz autoral: “cara, às vezes você precisa de muito tempo para soar como você mesmo”. O mestre do jazz tinha razão de sobra. As variações rítmicas de seu Kind of Blue e a bagunça polifônica do Bitches Brew são amostras de como Davis derreteu os neurônios criando músicas, desde as mais calmas daquele até as viagens deste álbum. Era o mesmo cara do jazz assinando dois discos fantásticos, talvez cada um tenha encontrado seu público em suas épocas de lançamento e também hoje, e alguns mais apaixonados pela obra dele conseguem traçar semelhanças e demais características dessas obras tão distintas. E Miles seguia compondo. Adaptando a frase dele à redação, seria “às vezes você precisa de muito tempo para escrever feito você mesmo”. Estamos na busca, Miles. Não sabemos fazer outra coisa.

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