A Barca dos Homens é uma história de caça e pesca, segundo o próprio autor

Waldomiro Freitas Autran Dourado nasceu em Patos de Minas, município de Minas Gerais, em 1926. Desde 1954 morava no Rio de Janeiro, onde veio a falecer em 2013, legando à humanidade uma obra fabulosa que totaliza 23 livros: novelas, ensaios e romances. E, dentre seus romances mais geniais, está, sem dúvida, A Barca dos Homens, lançado em 1961 e que, não à toa, veio a conquistar o prêmio Fernado Chinaglia.
A história começa com referência à personagem Luzia, empregada, prometendo levar Helena, Margarida e Dirceu (filhas de seus patrões Maria e Godofredo) ao “Cemitério da Praia”. O cemitério é a alegria da criançada e o incômodo do pai, que não vê com bons olhos um local de mortos ser encarado como área de diversão infantil. É a visão do senso comum, e Godofredo é exatamente a personificação do lugar comum, dos convencionalismos sociais que tanto entediam sua mulher. Com o passar dos anos, os defeitos dele foram ficando cada vez mais evidentes.
O casamento se desgasta sob o peso da rotina. Para Maria, a vida sexual com o marido é apenas suportável: o prazer dos primeiros anos os abandonara de todo. E, com isso, Godofredo cultiva um crescente rancor contra a família e – principalmente – contra a esposa. Esta mantém viço, beleza e até jovialidade, mas não conserva interesse sexual pelo marido. Com enfado, costuma ceder a suas investidas, mas sempre a contragosto e sem nenhuma satisfação. Godofredo se frustra notando a indiferença da mulher e chega a nutrir ódio por ela.
Outro cujo desejo por Maria também conduz a raiva e frustração é o tenente Fonseca. Este inveja Godofredo, seu dinheiro e, principalmente, sua esposa. Maria lhe figura como uma mulher sofisticada, interdita a ele, a quem estariam destinadas apenas as prostitutas da Ilha da Boa Vista.
As putas são um alento aos homens rudes da ilha: Zuleica, Filó, Margarida, Maura, Dorica e Mudinha compõe a casa de Dona Eponina – refúgio amargo, mas ainda refúgio. Para lá afluem os entristecidos do lugarejo, desgostosos da vida. Lá tenente Fonseca encontra amparo, o soldado Domício descobre o amor, e a vida cisma em brotar em meio ao sofrimento.
Sofrer parece o destino dos habitantes de Boa Vista. A empregada Luzia padece por seu filho Fortunato, “fraco das ideias”, enamorado pela cabra Almerinda, amigo do bêbado Tônho: ex-pescador em luta contra o vício e pelo resgate de sua dignidade.
Tudo isso é narrado com mestria por Autran Dourado, que, em estilo primoroso, abre mão completamente de aspas, travessões ou pontos de interrogação, sem que isso represente qualquer entrave à compreensão do texto.
Lê-se o romance com constante interesse, sem que o autor precise recorrer a acontecimentos mirabolantes ou fantásticos. Sob a pena de A. Dourado, até uma luta entre duas pequenas aranhas domésticas se torna emocionante (capítulo 2 da primeira parte).
Definida por Autran como “uma história de caça e pesca”, A Barca dos Homens é uma envolvente aventura sobre a perseguição a um homem frágil psicologicamente, que teria furtado um revólver, causando temor aos habitantes da Ilha da Boa Vista. E cada um destes também vive sua própria perseguição, caça e caçador em sua ilha particular, cercada de incompreensões. No meio disso, porém, ainda fulgura a esperança de um mundo de entendimento e harmonia, esperança essa que se anuncia a cada novo alvorecer.