Bel Ami, de Guy de Maupassant: um sedutor seduzido

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Não há mocinhos e vilões neste jogo protagonizado por um sedutor

 

Guy de Maupassant
Guy de Maupassant

O escritor francês Henri René Albert Guy de Maupassant (1850-1893) é mais conhecido por seus contos. Talvez por ter publicado centenas deles. Mas o fato é que tais narrativas curtas estão longe de ser a melhor produção do autor. Com certa frequência, Maupassant iniciava o texto com dois personagens amigos conversando, até que um deles dizia algo do tipo: “Agora não me interrompa que vou lhe contar uma história sobre isso”. Só a partir daí começava a matéria que deveria de fato constituir o conto. Além do preâmbulo desnecessário, era bastante incômoda, ao leitor, a artificialidade de um dos personagens conseguir contar a história completa, sem que o outro a interrompesse com perguntas ou observações.

No romance Bel Ami, não há nada desnecessário, destoante, artificial ou falso na narrativa. Escrita em 1885, a obra revela um Maupassant maduro artisticamente, dono dum estilo primoroso. Seu amigo e mentor Gustave Flaubert (1821-1880) costumava afirmar que um artista deve estar em sua obra como Deus diante do mundo: onipresente e invisível. E Guy de Maupassant habita seu romance exatamente dessa forma. Os personagens vivem como por si mesmos dentro de suas coerências e idiossincrasias tipicamente humanas, sem que o autor os mova artificialmente como um deus despótico.

O romance conta a trajetória de Georges Duroy, antigo suboficial, filho de rústicos camponeses, que tenta ganhar a vida na Paris de fins do século 19. Inicialmente arranja um emprego bem simples num escritório da “Estrada de Ferro do Norte”, mas tudo muda quando ele reencontra um ex-bel amicolega do exército, chamado Forrestier. Este desaconselha Duroy a aceitar o emprego de professor de equitação que lhe ofereciam. Diz que, uma vez que tenha dado lições de equitação “aos mundanos ou a seus filhos”, eles não poderiam mais se acostumar a tratá-lo como um igual. Começa aí a sedução de Duroy pelos “mundanos”. Ele vai se revelando mais e mais sedutor ao longo do livro, usando as mulheres como ferramentas para seu alpinismo social, porém o interessante no romance é que Georges Duroy não é apenas um vilão diante daquelas que explora, ele é também vítima duma sociedade que lhe impõe seus valores.

Vem a se casar com uma viúva, o que lhe favorece materialmente, mas não pensa nela como simples degrau rumo à riqueza. Pode-se até notar nele uma real fascinação por ela (amor, quem sabe?), que vai se quebrando aos poucos pelo ciúme que ele passa a ter do falecido. Não sente ciúme dos amigos da mulher, mas a imagem do falecido e as referências positivas feitas a este tornam Georges amargo. À força, tenta descobrir se a esposa traíra o morto. Ela nega, mas Duroy insiste na pergunta, zombando, dizendo que o outro bem que tinha aspecto de cornudo. Dava a entender que ficaria feliz em saber que seu antecessor estivera na ridícula condição de marido traído. Pelo tom de uma resposta da esposa, George imagina que sim, ela traíra o antigo cônjuge. Reafirma isso na própria mente todos os dias e tem raiva da esposa. Trai a mulher diversas vezes mas não se sente vingado: são prazeres efêmeros que não satisfazem sua alma.

Cada vez mais encara sua mulher (e todas as outras) como meros instrumentos para sua escalada social. E segue. Oprime as mulheres, engana os homens, porém jamais alcança real satisfação. Sua vida é vazia e sobre ela paira o espectro da morte, fantasma que espreita cada um de nós, só esperando seu momento de ataque. O velho poeta Norbert de Varenne fala para Georges Duroy acerca da vacuidade da vida e da inevitabilidade da morte e este assunto volta à tona algumas vezes ao longo do romance. Para escapar dessa realidade, Georges dá asas a sua ambição e se despe de todos os escrúpulos imagináveis.

Muitíssimo diferente das atuais telenovelas, aqui não há vilões e mocinhos. E o casamento no final não é, de forma alguma, a coroação do bem. Há sempre o dia seguinte. Num mundo de ganâncias e hipocrisias, as falsidades sempre seguem, nada se abala verdadeiramente. Alguns ascendem, outros declinam, mas nada grave. Nada que ponha fim à história de maneira épica, grandiosa. Se a realidade retratada no romance não agrada ao leitor, não cabe ao autor transmutá-la magicamente no fim. Cabe, isto sim, ao leitor refletir sobre ela e (quem sabe?) mudar a si próprio e sua postura diante das hipocrisias do mundo que o cerca.

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Autor do livro de crítica literária Malandragem, Revolta e Anarquia: João Antônio, Antônio Fraga e Lima Barreto (Editora Achiamé, 2005). Em 2011, recebeu menção honrosa no IX Concurso Municipal de Conto – Prêmio Prefeitura de Niterói com "O Anão", posteriormente publicado. Em 2013, obteve menção honrosa no 7º Prêmio UFF de Literatura, com o conto "(Des)encontro", incluído em antologia publicada pela EdUFF. Em concursos de contos do Centro Literário e Artístico da Região Oceânica de Niterói (CLARON) ganhou 1º lugar (em 2016), 2º lugar (2017) e 7º lugar (2018). No Concurso Literário Bram Stoker (contos de terror), foi contemplado com o 10º lugar em 2018.

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