Enquanto muitos buscam a vitrine, Belchior, o artista misterioso, queria mesmo era ser um cidadão comum, suas músicas demonstram uma mente que compreendia seu país
Belchior sempre foi conhecido por ser reservado e cheio de mistérios, alguns deles pincelados em suas músicas. Entre 2008 e 2009, após um bom tempo sumido, o cantor ressurgiu com várias polêmicas no currículo: dívidas em hotéis e estacionamentos em aeroportos, além de processos judiciais.
Ninguém sabia direito onde achá-lo, nem amigos nem família. Os jornais percorriam lugares onde ele deixara pistas, mas nada parecia preocupá-lo. Até mesmo quando a equipe do “Fantástico” (programa de tv da Rede Globo) o encontrou em uma cidadezinha do Uruguai em 2009, Belchior estava sendo ele mesmo: simpático e despreocupado.
Em situações como essas, Belchior demonstrava sua forma rara de lidar com a fama, já que qualquer outro estaria preocupado com sua imagem. Ele vivia como um cidadão comum rodeado por holofotes ansiosos.
O Disco
Voltando lá para o seu início de carreira, três anos depois de seu primeiro e grande lançamento “Alucinação” (1976), Belchior lançava seu disco “Era uma vez um homem e seu tempo”, em 1979. O álbum adiantaria algumas coisas que ele faria nos seus últimos anos de vida, escondendo-se em casas de amigos no interior do Rio Grande do Sul ou fugindo para o Uruguai em busca de uma vida simples de desconhecido.
O álbum inicia com uma curiosidade chamada “Medo de Avião”, um dos clássicos do poeta que embalava romantismo em notas dançantes. Chamo de “curiosidade”, pois, fora o eu lírico, Belchior não tinha problema em viajar de avião, tanto é que sua viagem do Ceará para o Rio de Janeiro aos 23 anos durou 72 horas em um avião do Correio Aéreo Nacional, que parava toda hora para entregar ou buscar correspondências.
RG Tropical
Ainda que seu som bebesse de Dylan e referenciasse Beatles, Belchior esbanjava identidade nacional. Como no clássico “Fotografia 3×4”, em seu álbum de estreia, no qual ele mostrou para o país não só o seu rosto, mas o rosto de uma multidão de pessoas que também desceu “do norte para cidade grande”.
Já no álbum de 1979, Belchior brincou com o imaginário coletivo da época com a música “Retórica Sentimental”, usando o escritor José de Alencar e os poetas Gonçalves Dias e Olavo Bilac para falar sobre um país que sempre foi visto de fora como uma natureza exótica. Ele se coloca como um outsider para mostrar o lugar comum que é o Brazil, inclusive sugerindo uma tropicalização da Europa, ao invés do contrário.
“Sabe lá se não queria
uma Europa bananeira!”
Um Romântico Comum
De forma carinhosa e doce como ele era, “Brasileiramente Linda” é um afago amoroso na mente brasileira. Belchior tinha o dom de transpor suas paixões para a estética das letras e melodias. Não é nenhuma novidade falar isso sobre o artista que escreveu canções como “Coração Selvagem” ou “Todo sujo de batom”. Porém, “Brasileiramente Linda” tem uma certa ingenuidade enraizada na paixão, em que Belchior busca gestos primitivos de amor humano. E tinha que ser, pois somente o amor seria tão banal.
Quando chegou ao Rio de Janeiro, em abril de 1971, Belchior ficou conhecido entre os grandes artistas da época. Mas quem lhe mostraria para o país seria Elis Regina, ao gravar “Como Nossos Pais”. A música, escrita por ele, bombou com voz e rosto dela, mas também o deixou visível ao mundo. E nada mais justo, já que o próprio Belchior gostava mais da versão dela.
Essa e outras curiosidades sobre Belchior foram relatadas no podcast “Eu Tava Lá”, no episódio “O Belchior estava na minha casa”, no qual Marina Trindade relata que viveu ao lado do artista em sua própria casa, nos momentos em que ele se escondia pelo Rio Grande do Sul. Ela conta sobre momentos inacreditáveis ao lado dele – como um mágico encontro entre Belchior e um passarinho — e deixa ainda mais claro como ele fugia da mídia e de qualquer atenção que geralmente se dá a alguém famoso.
A Busca Melancólica
Do dia a dia escondido em Santa Cruz do Sul aos jornais do país, o Belchior misterioso era o mesmo. Em “Pequeno perfil de um cidadão comum”, ele fala de forma melancólica sobre um dia a dia romantizado, desejando ser alguém que cumpre a missão ao chegar no fim da tarde.
Ele tinha facilidade em escrever sobre o mundano, pois vivia disso ou para isso. Ao mesmo tempo, ele imprimia certa particularidade nessa universalidade, talvez fruto de um desejo em ser algo que não poderia mais.
“Conheço o meu lugar” é uma das músicas mais inspiradoras que ele já escreveu, ela tem uma certa bravura pra dizer coisas que precisamos ouvir. Quando tive o primeiro contato, percebi que não conhecia o meu próprio lugar. E aqui, diante de vários sentimentos dúbios, Belchior deixa claro que seu mistério era externo, pois internamente ele sabia tudo. Sinto que, além de uma música declaratória, é também uma forma didática de dizer que é muito importante entender o seu lugar.
É interessante ouvi-lo falar que não teria outra ação possível se não “tentar inaugurar a vida comovida, inteiramente livre e triunfante”. Naquele momento, o país vivia um período político delicado, passando pelos destroços da ditadura militar, e é interessante ouvir como ele tentava se encontrar para fazer o melhor.
Hoje, quando saio para caminhar na rua, procuro sempre olhar atentamente ao redor, para realmente conhecer o lugar naquele presente instante, que logo depois já será outra coisa.
Recentemente, ao passar em um daqueles barzinhos de bairro, ouvi tocar “Comentário a respeito de John”. Eu levei logo um susto, pois não esperava. Mas, ao identificar a faixa etária dos frequentadores do local, entendi na hora. Essa é mais que uma homenagem a um dos seus ídolos, é quase uma despedida antes do tempo. Fico imaginando John Lennon ouvindo essa música, mas a linha do tempo acaba tornando difícil a possibilidade desse encontro, já que a música foi lançada cerca de um ano antes do assassinato de Lennon.
O que Belchior faz aqui é um comentário melancólico ao sonho contracultural de “Imagine”, que estava sendo derrubado com os novos tempos. Dá para sentir a tristeza dele na voz. E ainda, como uma forma de profetização, assim como fez o próprio John Lennon, a felicidade veio como uma arma quente e derrubou todo e qualquer sonho de um mundo sem nada para matar ou morrer.
“Meu cordial brasileiro” tem uma atitude parecida com “Conheço meu lugar”. Ela emana um discurso com certa garra. É quase uma indagação sobre sermos ou não sorridentes e felizes. Um choque contra a parede e um dedo enriste na cara mandando calar a boca. Enquanto as outras músicas romantizam o cidadão comum, nessa Belchior dá um empurrão nas costas para lembrá-lo de ficar atento.
Pensando em como Belchior lidava com sua fama naquela época, era uma certa proteção contra uma vida pública que era menos intensa. Hoje, todos estão próximos demais, sabemos a rotina dos artistas favoritos e queremos sempre mais e mais. Porém, ainda há quem não se exponha e guarde um ar místico que provoca ainda mais a curiosidade. É uma contradição, mas que não deixa de refletir bons resultados para os dois lados. O fã e o artista em um lugar comum de respeito.
Fala-se muito bem de Belchior. Dos amigos que criou na sua jornada ou dos meros parceiros de um único jantar. Sempre se menciona que ele era um cara super aberto, doce e carinhoso.
Ele não queria mostrar isso, ele só queria ser.
Literalmente, morando na filosofia. Ainda há muito o que ouvir do que Belchior deixou dito. Infelizmente, ele partiu em 2017, mas nos resta prestar atenção à charmosa mística que sua obra e vida exalam.
Referências:
https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9094
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/11/11/turismo/17.html
https://eutava.la/eu-tava-la-113-o-belchior-estava-na-minha-casa-com-marina-trindade/
Créditos Homo Literatus
Esse texto maravilhoso foi escrito por Igor Furini, com revisão de Raphael Alves e edição final de Mario Filipe Cavalcanti, Editor-chefe do Homo Literatus, que recomenda a leitura ao som de Belchior, deixando as músicas fluírem.