O que torna a narrativa de Julio Cortázar tão misteriosa e atraente? Ler o volume de contos Bestiário pode trazer algumas respostas.
A fórmula para chegar a uma narrativa atraente, envolvente, surpreendente e todos os ‘entes’ adjetivos que caberiam aqui jamais foi revelada. E aí, a pergunta (que pode ser retórica): como é que alguns autores conseguem ou conseguiram? A resposta tem grandes chances de ser extensa e prolixa, sendo mais fácil, portanto, mencionar alguns exemplos. O de hoje é o escritor argentino Julio Cortázar.
Um dos maiores nomes da Literatura Argentina, Cortázar tem como obra prima o romance Jogo da Amarelinha (Rayuela, no original), mas foi com os contos que começou a caminhar para um trabalho genial, se consagrando assim como um dos grandes, não só entre “nuestros hermanos“, mas no mundo todo. Sua produção literária ganhou fôlego durante as décadas de 50 e 60, quando o autor se tornou um exímio contista, deixando para a eternidade suas melhores narrativas curtas.
Independente do gênero literário, toda a sua obra está carregada de simbolismos, acontecimentos surreais e extraordinários, característica que enquadrou o autor dentro do realismo fantástico. Outra marca, principalmente nos contos de Bestiário, é o mistério. Não pense, porém, que seu enredo misterioso se parece com os de Poe ou Quiroga, peritos no suspense. O traço enigmático de Cortázar está no relato que revela e oculta, ao mesmo tempo, deixando para o leitor todo o trabalho de desvendar os segredos mantidos pelo narrador.
Descobrir o que está nas entrelinhas poderia ser o grande trunfo de quem percorre as páginas Bestiário, se isso fosse possível. Tal qual fez Machado de Assis ao escrever Dom Casmurro, Cortázar deixa a dúvida no ar, no desfecho de cada conto. Assim como você pode estar condenando uma inocente, ao concluir que Capitu traiu Bentinho, você poderá se enganar ao julgar personagens e ainda criar situações que talvez nem tenham passado pela cabeça do autor ao escrever as histórias que pertencem à coletânea.
Por isso, quando estamos falando da narrativa criada pelo escritor argentino, não podemos, jamais, colocar um ponto final. Nos cabe apenas perguntar, questionar, levantar possibilidades e interpretar cada uma delas com muito cuidado, sempre respeitando a leitura alheia. Afinal, pode ter sido justamente esta a intenção de Cortázar: fazer com que o leitor trabalhe em seu texto, sendo ele o maior responsável pelas ‘conclusões’ e impressões dali tiradas.
Para exemplificar tudo isso, não precisa ir muito longe. Basta ler o primeiro conto do volume: Casa Tomada. Várias teses foram criadas a partir desta narrativa curta, com menos de dez páginas. O enredo pode ser definido como “simplório”, quando simplesmente resumido: dois irmãos vivem em uma casa, cuidando de todos os cômodos com muito zelo. De repente, uma parte da casa é tomada e, quando Irene e o irmão se dão conta, toda a casa foi tomada e eles se veem obrigados a partir e ponto final.
– Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte do fundo.
Ela deixou cair o tricô e me olhou com seus graves olhos cansados.
– Tem certeza?
Confirmei.
– Então – disse ela apanhando as agulhas – vamos ter que viver deste lado. (pag. 13)– Tomaram esta parte – disse Irene.
[…]
– Você teve tempo de trazer alguma coisa? – perguntei inutilmente.
– Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do meu quarto. Agora era tarde. (pag. 16)
Falando assim, parece apenas mais um conto qualquer, mas é nesse ‘parecer’ que está a grande genialidade de Cortázar, que instiga os leitores a correrem atrás de pistas, dentro e fora do texto, para descobrir quem tomou a casa ou qual o significado disso tudo. Há quem acredite que trata-se de uma crítica social, ao governo argentino da época, e quem defenda que este é um conto de horror ou uma sátira. Qual destes vereditos estão certos? Nunca saberemos: todos, nenhum ou estes e muitos outros que podem ser levantados, tudo é possível, desde que o principal seja levado em consideração: o texto e as possibilidades que ele nos oferece.
Para citar outro exemplo: Longínqua, uma das narrativas mais psicológicas de todo o livro. As páginas percorrem o diário de Alina Reyes, protagonista. E conforme a leitura vai avançando, as dúvidas só aumentam, assim como as possibilidades.Fazendo um intertexto, Longínqua lembra O Outro, conto de Borges em que o personagem do presente se encontra com ele mesmo, no futuro. O encontro acontece em um banco numa praça de Boston e o fato é narrado anos depois.
À primeira vista, as duas narrativas não têm muito em comum, principalmente pelo fato de Alina Reyes não deixar claro de que a longínqua é ela mesma, ou no passado ou no futuro ou em uma outra dimensão:
Pensei uma coisa curiosa. Faz três dias que não sei nada da longínqua. Talvez agora não batam mais nela, ou quem sabe conseguiu um abrigo. Mandar-lhe um telegrama, um par de meias… Pensei uma coisa estranha. Eu chegava à cidade terrível e era de tarde, uma tarde esverdeada e aquosa como nunca são as tardes se a gente não as ajuda pensando-as. (pag. 36)
As duas, porém se encontram, em uma ponte em Budapeste, e então o leitor pode se aventurar indo e vindo entre as páginas para tentar decifrar o enigma.
Apertava a mulher magérrima, sentindo-a inteira e absoluta dentro do seu abraço, com um crescer de felicidade igual a um hino, a uma revoada de pombos, ao rio cantado. Fechou os olhos na fusão total, fugindo das sensações de fora, da luz crepuscular, de repente tão casa, mas certa da sua vitória, sem comemorar por tão seu e por fim. (pag. 42)
Trazendo um toque de suspense, fazendo com que o leitor se sinta completamente rendido aos fatos que vão se desenrolando, o conto Ônibus também é puro enigma. A protagonista, Clara, está feliz com o seu dia de folga e pega um ônibus para encontrar uma amiga. Ao embarcar na condução, Clara se sente incomodada com o olhar indiscreto do motorista, cobrador e passageiros, que “pareciam criticar alguma coisa em Clara” (pag. 45). Em seguida, outro moço pega o mesmo ônibus e os dois são vítimas dos olhares. O ônibus segue seu trajeto e as impressões, medos e angústias de Clara são reveladas. O outro passageiro ‘assediado visualmente’ se junta a Clara e os dois compartilham suas conclusões, convidando o leitor a verificar o que poderia ter causado todo o estranhamento.
Este é, provavelmente, o conto mais cotidiano de todo o livro. Quem anda de ônibus com frequência se identifica com os personagens. Afinal, quem nunca se sentiu alvo de curiosidade dos demais passageiros, ao embarcar em qualquer transporte público? Como o próprio narrador reflete: “É natural que os passageiros olhem para quem acabou de subir […]” (pag. 46)
Clara e o rapaz se sentem assim, mas de forma mais intensa a ponto de entrarem em pânico, desespero. Depois de descerem, os dois buscam algo que poderia deixá-los mais à vontade em meio dos demais passageiros, mostrando a necessidade de que muitas pessoas têm em se sentirem parecidos com um grupo de pessoas, mesmo que nunca mais estas pessoas se encontrem e que a identificação entre o grupo não faça tanto sentido.
O livro é formado ainda por outras histórias, igualmente envolventes: Circe, Cefaleia, As portas do Céu, Bestiário e Carta a uma senhorita em Paris, cada um com seus mistérios e o convite para que o leitor investigue as pistas deixadas pelo narrador.
Bestiário
Julio Cortázar
Civilização Brasileira
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman