A boa escolha narrativa de “O sol é para todos”

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A boa escolha narrativa de “O sol é para todos”
WASHINGTON - NOVEMBER 05: Pulitzer Prize winner and "To Kill A Mockingbird" author Harper Lee smiles before receiving the 2007 Presidential Medal of Freedom in the East Room of the White House November 5, 2007 in Washington, DC. The Medal of Freedom is given to those who have made remarkable contributions to the security or national interests of the United States, world peace, culture, or other private or public endeavors. (Photo by Chip Somodevilla/Getty Images)

Além de tratar sobre o racismo, a obra O sol é para todos, de Harper Lee, tem como grande diferencial a voz infantil da narradora 

Harper Lee, autora de O Sol é para todos | Foto: Chip Somodevilla-Getty Images

Bons livros podem ser avaliados por diversos ângulos. Geralmente, eles trazem não apenas temas que prendem, mas também formas interessantes de contá-los. É o caso de O sol é para todos (no original, To killl a mockinbird), um clássico americano, de Harper Lee, publicado em 1960. Para além da temática do racismo, colocada na obra de maneira ampla e contundente, a narrativa tem como seu maior trunfo a voz infantil da narradora Scout.

Quando a história se inicia, a menina encontra-se com apenas seis anos. É uma criança adorável, embora pouco adequada ao que se espera de uma jovem de “boa família”: é briguenta, agitada, fala palavrões, veste-se com macacões de menino e chama o pai, o advogado Atticus Finch, pelo primeiro nome. Viúvo, Atticus tem a difícil empreitada de cuidar dos filhos (o mais velho, Jeremy, tem dez anos), o que faz com ternura e paciência; no entanto, parte dessa criação acaba sendo delegada à empregada Calpúrnia – que a executa com mão de ferro, dentro dos limites de sua influência. A narrativa ganhou fama principalmente pelo conflito gerado na comunidade de Maycomb a partir do caso de Tom Robinson, um jovem negro acusado de estuprar uma garota branca. Atticus assume a defesa de Tom e, com isso, passa a dividir as opiniões da cidade a seu respeito. O episódio vai ganhando cada vez mais destaque ao longo da obra, culminando num tenso julgamento que expõe ao leitor as forças envolvidas na situação.

Contudo, o foco deste texto é deixar um pouco de lado a premissa central e analisar a feliz escolha da autora quanto à voz narrativa. Isso porque a pequena Scout – dada a sua pouca idade e, consequentemente, pouca percepção do que ocorre ao seu redor – poderia mostrar-se um problema enquanto narradora de uma obra com temática tão densa. Porém, o que acontece é justamente o contrário: o olhar de Scout para as pessoas é curioso e livre de julgamentos prévios, o que escancara ainda mais todos os preconceitos que determinam a vivência dos membros daquela sociedade.

É importante observar que o racismo ocupa espaço central na trama, mas não é o único caso de preconceito exposto. Há também a importante presença (e negação) de Boo Radley, homem recluso que acaba se tornando uma lenda local. Segundo se conta pela cidade, Boo era um jovem indomável muitos anos antes, que termina trancafiado em casa pela família para não ter que ser internado como louco. A história de Boo, cercada de mistérios e fatos mal contados, mostra como a cidade interiorana é dura com os tropeços da juventude, com a falta de enquadramento ao que se espera. É mais fácil esconder e maltratar um filho “problemático” do que assumi-lo perante os outros, mesmo que isso o leve à insanidade. Em determinada conversa com Maudie, uma das vizinhas que se relacionam com as crianças, Scout a questiona sobre a suposta loucura de Boo, ao que a mulher responde com amargor: “se não era, deve ter ficado”.

O mesmo tribunal é voltado para a própria Scout quando a tia Alexandra passa a morar na casa. Segundo ela, Atticus deixava os filhos muito soltos, sem a condução adequada para formá-los socialmente. Logo percebemos que a formação que a tia chega para fornecer é carregada de preconceitos e padrões, buscando enquadrar Scout num modelo de menina. Ela é criticada pelas roupas masculinas que usa e acha graça quando a tia, que precisa vesti-la em certo ponto da narrativa, utiliza justamente o macacão que tanto odeia devido ao susto do momento. A repressão a seus comportamentos é constante, na tentativa da tia de transformá-la em uma “dama”. Um dos episódios mais pungentes nesse sentido é quando o próprio pai tenta aplicar o mesmo discurso da tia aos meninos, num monólogo em que se mostra muito pouco convincente (e convencido):

“A tia de vocês pediu para tentar inculcar em vocês dois a ideia de que não são uns pés-rapados e sim o produto de várias gerações de gente de boa cepa. – Atticus fez uma pausa para me observar enquanto eu tentava localizar um inseto na minha perna – Gente de boa educação – continuou ele depois que encontrei o inseto e o esmaguei – e que deviam honrar o nome que tem. Atticus continuou: – Ela me pediu para dizer a vocês que devem se comportar como a pequena dama e o pequeno cavalheiro que são. Ela quer falar com vocês sobre a importância da nossa família no condado Maycomb através dos anos, para que vocês saibam quem são e se comportem de acordo – terminou a galope.”

A reação das crianças é de susto e incompreensão. Os meninos começam a chorar e o pai claramente se arrepende, pedindo para que esqueçam aquilo e não se preocupem com nada. Nota-se o seu conflito interno: a vontade de Atticus de deixar que as crianças sejam apenas crianças, embora sinta-se ele também pressionado pelos julgamentos sociais.

E é justamente esse o ponto alto da narração da menina. Ao colocar os fatos na voz de Scout, somos apresentados àquele ambiente e àquela história sob dois pontos de vista diferentes: o da menina, que é ingênuo e ainda não compreende o mundo adulto, com seus paradigmas rígidos e suas normas excludentes; e o nosso, já inserido em sociedade, capaz de entender como todo o jogo social funciona. Dessa forma, a habilidosa narração da autora vai nos apresentando pistas que nossos olhos adultos podem interpretar, como quando, após o monólogo acima, Scout diz que Atticus “parecia estar com um problema no colarinho”. A menina não é capaz de fazer um julgamento desse ato, enquanto nós facilmente notamos o desconforto do homem ao se sentir obrigado a proferir tais palavras. O mesmo movimento ocorre quando um grupo de homens aborda Atticus na porta da prisão onde ele protege Tom de ser linchado. As crianças aparecem e Scout, sem perceber o que acontece, dirige-se a um dos homens, reconhecendo-o como o pai de um dos colegas de escola. O homem mostra-se absolutamente constrangido com a gentileza da menina, já que se encontra no local para cometer um ato de pura vileza. É tocante constatar, assim, que numa obra focada em abordar os julgamentos sociais e seus efeitos nocivos na vida dos sujeitos, acompanhamos os acontecimentos justamente pelos olhos de alguém incapaz de emitir, ou mesmo de compreender, esses julgamentos.

O contraste com a inocência da menina é, muitas vezes, conferido pelo comportamento de seu irmão. Ele a reprova quando ela começa a falar sobre temas delicados, e é dele a iniciativa de ir até a porta da prisão, intuindo a tensão que permeia a cidade. Nos atos de Jem – que Scout não compreende e que atribui a uma “fase” – percebemos o seu progressivo entendimento da vida social, de suas incongruências e limites. A reação que apresenta após o julgamento de Tom Robinson é prova cabal da dificuldade do menino em lidar com um mundo que vai se revelando a ele, sendo mais velho e, portanto, mais perceptivo, como um lugar cruel e injusto.

O texto verbalizado pelos adultos é o menos sutil e o que mais soa panfletário. Tia Alexandra, por exemplo, é bastante explícita, chamando a família Cunningham de “lixo” ao mencioná-los às crianças, assim como a vizinha Maudie, que encarna sem meias palavras a defesa dos negros depois do julgamento. São trechos claramente voltados aos adultos, buscando mostrar com todas as cores o absurdo que é o racismo, seja na voz de quem o assume ou de quem o critica. A presença desses trechos na história é compreensível, embora não seja, de fato, necessária. O trabalho feito com a narração de Scout já seria suficiente para que os bons leitores captassem toda a violência dos preconceitos colocados na obra.

Isso torna-se perceptível quando analisamos o filme que deriva do livro, dirigido por Robert Mulligan e com Gregory Peck no papel de Atticus. A película sequer apresenta a personagem da vizinha e não se preocupa em colocar esse tipo de discurso mais direto na voz das personagens, pois sabe que a história, por si só, carrega o seu peso. No entanto, faz a opção de se aproveitar parcialmente da narração de Scout, embora a menina não esteja fisicamente presente em todas as cenas. Trata-se do rompimento de um cuidado que a escritora teve em cada cena da narrativa – como na ocasião de um incêndio, em que Scout relata as suas lembranças a partir do momento em que foi acordada pelo pai, ou seja, dentro das limitações daquilo que presenciou e sentiu. Essa liberdade, porém, não prejudica o bom trabalho feito pelo filme, que mantém as partes essenciais da trama e traz atuações inspiradas. O Atticus Finch de Gregory Peck consegue transmitir de forma precisa a sua tranquilidade e competência, assim como a sua admirável altivez moral; também a Scout de Mary Badham é levada e cativante como se espera de sua personagem.

A comparação serve para retornarmos a uma velha conclusão: a de que a literatura e o cinema são linguagens diferentes e que, portanto, merecem ser apreciados cada um por suas peculiaridades.

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