A boa ideia do Cortázar

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Desde pequeno, minha relação com as palavras, com a escritura, não se diferencia de minha relação com o mundo em geral. Eu pareço ter nascido para não aceitar as coisas tal como me são dadas, diz Julio Cortázar ao traçar um paralelo entre a própria persona e O jogo da amarelinha (Rayuela), o romance mais famoso do escritor argentino. Eu poderia até lembrar o slogan de uma cachacinha como gancho para escrever sobre os 51 anos, agora em junho, da publicação do livro, mas ficarei na minha porque a fabricante da branquinha não coloca um vintém aqui no Homo Literatus.

Depois de um primeiro parágrafo vulgar, que se pretende engraçadinho, um narizinho de cera cretino, vamos à Rayuela, pois é o que interessa. O jogo da amarelinha é aquele romance que tal como a brincadeira infantil, se pode pular do jeito que convém. Quer dizer, o leitor ler como bem entender. Do capítulo 2, pode-se seguir para o 3 e assim por diante ou se pode aceitar a indicação do autor e pular a amarelinha de outra forma, saltando para o capítulo 116. Em seu contrarromance, como o próprio Cortázar o definiu, que conta os desencontros de um homem, Oliveira, em busca da mulher amada, a misteriosa Maga, o escritor dá ao leitor a oportunidade de escolher qual caminho quer seguir, faceta negada pelo romance clássico, que se forjou na linearidade da história.

Lançado em 1963, na Argentina, O jogo da amarelinha é uma das obras mais emblemáticas do boom literário latino-americano. A ousadia formal do romance, já presente em graus diferentes em outros livros do escritor, autor cuja visão política é indissociável da atividade artística, é uma das muitas rupturas surgidas na mítica década de 1960, em que os todos parâmetros vigentes foram postos em xeque. A tentativa mais radical de que era capaz naquele momento de colocar em termos de romance o que outros, os filósofos, abordam em termos metafísicos. Isto é, as grandes interrogações, as grandes perguntas, justificou Cortázar.

Eu releio muito os livros que tenho, sobretudo, os meus preferidos. Creio que todos sejamos assim. Relemos sempre aqueles livros que sem os quais não seríamos quem somos, que moldaram o nosso gosto e despertaram o nosso interesse. Entretanto, só outro dia vim me dar conta que sempre faço deles uma espécie ou um simulacro do O jogo da amarelinha. Às vezes, tiro da estante um ou mais exemplares e me ponho a ler trechos ao léu, indo de uma passagem no fim para outra no início, de uma obra à outra, e aí vão surgindo ideias, associações inesperadas, inusitadas, e crio, involuntariamente, um hipertexto, um caleidoscópico, que abre novos caminhos, formas de entendimentos e possibilidades. O céu é o limite.

Embora O jogo da amarelinha seja complexo pacas, a ideia de escrevê-lo foi simples. Assim explica Ari Roitman no prefácio da edição comemorativa dos 50 anos da obra, uma joia da Civilização Brasileira, que adquiri em ótimo estado por R$20 paus num sebo: Este livro começou assim: um dia Cortázar redigiu um capítulo, de umas quarenta páginas, e viu que aquilo não era um conto. Não sabia o que era, mas logo em seguida escreveu outro (“um capítulo muito erótico”) que ampliava o anterior. “E quando escrevi esse segundo capítulo parei, e aí sim, como toda a clareza, vi que estava fazendo a ação acontecer em Buenos Aires, mas o personagem que vivia aqueles episódios era um sujeito que tinha um passado em Paris”, conta. Decidiu então narrar esse passado em Paris compondo novos textos, que foi juntando com outros, transcritos dos muitos papeizinhos, blocos ou cadernetas, que rabiscava em mesas de bar ao longo dos anos anteriores. No final, simplesmente elimina um dos capítulos iniciais, o segundo, como um arquiteto insensato que mandasse retirar a pedra angular do prédio que construiu e descobrisse, perplexo, não só que a obra não desmoronava, mas também que ganhava complexidade e beleza.

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