As boas Mulheres da China – sobre a vida das mulheres do país da Grande Muralha

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As mulheres e crianças são as mais vulneráveis nos conflitos civis ou militares nos regimes tirânicos. É o que vemos no livro As boas mulheres da China, de Xinran

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Mulheres chinesas por Daniel Frauchiger

Li este livro há algum tempo e suas histórias me impressionaram. A China tem uma cultura milenar estranha aos nossos costumes, mas no que diz respeito ao modo como a sociedade enxerga a mulher não difere muito do mundo ocidental.

A mulher chinesa e a mulher oriental em geral são vistas como mais reservadas e carregam há tempos o estereótipo de submissas. Nas províncias eram comuns os casamentos arranjados ou forçados, e as concubinas. Possivelmente muita gente já deve ter ouvido falar sobre os bebês do sexo feminino abandonados à própria sorte e até do infanticídio de meninas por causa da “política do filho único” implantada pelo governo chinês na década de 70. Isto acontecia porque por tradição, além dos bebês masculinos serem mais valorizados, quem cuidava dos pais na velhice era o filho. Em algumas aldeias distantes havia o costume de um homem compartilhar a esposa com os irmãos, e até hoje em áreas rurais, apesar de proibido no início do século 20, ainda permanece o costume de atar os pés das meninas para que eles encolham e fiquem pequenos. Pés pequenos são considerados símbolos da beleza feminina pelos homens orientais. É quase consenso nos dias atuais que nem tudo se justifica em nome dos costumes, mas para quem nasce, cresce e morre em uma determinada cultura, sem conhecimento e acesso à outras possibilidades e modos de pensar, tudo pode parecer muito normal.

Xinran é uma jornalista chinesa que mantém um programa de rádio chamado Palavras na brisa noturna e propõe discutir aspectos do cotidiano onde ela, usando suas próprias experiências, sugere meios de lidar com as dificuldades da vida. Isto só foi possível por causa do lento processo de abertura da China iniciado em 1983 por Deng Xiao Ping. Porém, não sem vigilância, mas já era uma lufada de ar. Nos quarenta anos anteriores não era permitido discutir questões pessoais na mídia que só transmitia propagandas do Partido.
As ouvintes de Xinran são em sua maioria mulheres, mas sua perplexidade se inicia quando ela começa a receber cartas anônimas ou com nomes fictícios de mulheres de diferentes idades e condições sociais para serem lidas no ar. Xinran que até então acreditava compreender a mulher chinesa, passa a perceber que sabe muito pouco e acaba por sair a campo e na medida do possível, ouvi-las pessoalmente. São relatos tristes e singelos de mulheres que muitas vezes guardaram silêncio por anos. Há o relato de uma jovem que tão logo se tornou mulher aos 11 anos, começou a ser abusada pelo próprio pai e quando finalmente contou para a mãe, não teve seu apoio. A jovem se esforça para ficar doente pois prefere viver no hospital do que em sua própria casa e acaba por falecer aos 17 anos. Ou quando Xinran recebe uma carta do menino de uma aldeia pedindo que ela salve uma mulher que um homem de sessenta anos mantém acorrentada em sua casa e já é do conhecimento de todos, mas que ninguém ousa fazer nada. A mulher é uma menina de apenas 12 anos que foi raptada.

Com a abertura econômica, algumas mudanças ao estilo ocidental começaram a surgir nas grandes cidades e Xinran não havia se apercebido disso até entrevistar uma estudante universitária de nome Jin Shuai, muito popular em sua escola. A estudante, uma jovem bonita e já completamente desencantada com relação ao amor e aos homens. Para ela os homens chineses desprezam tanto as esposas quanto as amantes, o que fica evidente em “conversas de bar” como se diz aqui no ocidente, quando já meio altos definem as mulheres de forma depreciativa comparando-as à peixes. Para Jin Shuai as mulheres que se apaixonam são tolas e ela acha normal que estudantes universitárias bem educadas e cultas exerçam atividades como “secretárias particulares” ou acompanhantes de homens de negócios, que passam a surgir aos montes com os novos rumos da economia chinesa. Mas ela alerta para que nunca acreditem em juras de amor. Jin Shuai cita um livro que havia lido sobre o amor e dizia o seguinte: ‘Um leão faminto comerá um coelho se não encontrar coisa melhor, mas depois de haver esmagado o coelho, vai abandoná-lo para caçar uma zebra…’ O trágico é que tantas mulheres aceitam o julgamento dos homens que dizem que elas são ‘más’.”

Há o relato de uma mulher que se tornou rica ao se casar, porém infeliz. Havia sido na juventude uma estudante inteligente, bonita e cheia de sonhos, mas que iludida com a propaganda durante a Revolução Cultural deixou a casa dos pais e foi servir ao Partido. Quando estava lá foi dada como segunda esposa a um dos oficiais, um sujeito grosseiro e ignorante de quem nunca mais pode se livrar e a quem o marido despreza e humilha na frente dos próprios filhos. Há a história das mães que perderam seus filhos no terremoto da cidade industrial de Tangshan em 1976 matando 300 mil pessoas, e juntas criaram um orfanato para abrigar as crianças que também perderam seus pais. A mãe que depois de idosa foi morar nas ruas para não atrapalhar a vida do filho, um político bem sucedido. Do casal de jovens que se apaixonou ainda na universidade e foram separados pela Revolução, e a mulher procurou o amado durante 45 anos mas ao encontrá-lo, ele estava casado. A história da menina que perdeu a razão depois de sofrer todo tipo de abuso psicológico e físico após ter se perdido dos pais, considerados inimigos do regime durante a Revolução. Da mulher bem sucedida na profissão que é abandonada pelo namorado mais novo sem nenhuma explicação e o aceita de volta depois de anos, mesmo sabendo que ele poderá abandoná-la novamente. Estas são apenas algumas histórias, mas com certeza são tantas que não caberiam todas num livro.

As mulheres e crianças são as mais vulneráveis nos conflitos civis ou militares nos regimes tirânicos.

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Xinran, a autora

Xinran nasceu em Pequim, em 1958. Trabalhou em Nanquim até 1997, quando a impossibilidade de publicar seu livro na China a obrigou a mudar-se para Londres com o filho. Ela também havia padecido durante a Revolução Cultural implementada por Mao Tsé Tung quando foi afastada dos pais suspeitos pelo Partido, e enviada junto com seu irmão mais novo para uma escola com outras crianças que tinham os pais presos, onde permaneceu por vários anos, sendo desprezada pelos colegas considerados “a nova geração da Revolução”.
Naquele período as mulheres não podiam usar nenhum tipo de maquiagem e tinham que se vestir como os homens. Segundo Xinran, nas avaliações que se fazem hoje sobre os danos causados à sociedade chinesa durante a Revolução Cultural, deve-se incluir os danos aos instintos sexuais normais, que foram mais perversos para as mulheres. Em regimes autoritários de todo tipo onde o Estado tem a pretensão de orientar até mesmo a vida íntima do cidadão, a vida das mulheres pode ficar muito difícil.

Quem foram ou ainda são as boas mulheres da China? Esclarecendo aqui que o adjetivo “boas” aqui refere-se à “submissas”. Nas palavras de uma das ouvintes de Xinran, “na sua época as mulheres obedeciam às ‘ três submissões e quatro virtudes’: submissão ao pai, em seguida ao marido e, depois da morte deste, ao filho. As virtudes eram fidelidade, encanto físico, decoro na fala e nos atos, e diligência no trabalho doméstico.” Por milhares de anos elas não podiam por os pés fora de casa. Uma mulher estudar, ler e escrever, discutir assuntos de Estado como um homem, e até dar conselhos a homens era heresia para a maioria dos chineses.

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