Borges e o eterno retorno de Nietzsche

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Borges retorna a Nietzsche

No conto Os teólogos, do livro O Aleph, de Borges, a personagem Aureliano, coadjutor de Aquiléia, tem o conhecimento de uma seita, monótonos, cujo fundamento concebe a história como um círculo, “e que nada é que não tenha sido e não será” (2008, p.33).

O conto inicia-se com a entrada dos hunos na biblioteca monástica para rasgar e queimar os livros que professassem fé contrária ao seu deus. Em meio às chamas, um livro permaneceu intacto um que narrava um ensinamento de Platão em Atenas: “depois de séculos, todas as coisas recuperarão seu estado anterior, e Platão, perante o mesmo auditório, em Atenas, ensinará de novo a mesma doutrina”.

A passagem da história como circulo e o da repetição dos acontecimentos sinalizam a pretensão deste texto: o de discutir a teoria do eterno retorno do mesmo de Nietzsche situando-a também como uma ficção filosófica, nos termos de Hans Vaihinger (1852-1933).

Para tanto, não entraremos na refutação de Borges, em “História da eternidade”, à teoria do eterno retorno. Procuraremos, portanto, compreender o fundamento da teoria para identificarmos a visão de mundo de Nietzsche e a tomaremos como mais uma interpretação, interpretação oposta à linearidade do tempo e que a coloca ao lado, também, de uma fábula; desse modo, uma ficção que objetiva, não dizer a verdade do mundo, mas orientar-nos nesse mundo de representações.

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Em Nietzsche não há a verdade. Tudo são interpretações. Não caminhamos inexoravelmente a um fim, cujo início deu-se com o verbo; não houve esse começo, não o há. Há, segundo Nietzsche, o eterno retorno, portanto, o porquê de o sol nascer dia-a-dia mais poente.  É por meio dessa doutrina, do eterno retorno, que Nietzsche pretende superar o niilismo do século XIX, o pessimismo que busca vigorosamente dar um sentido a um mundo cujos valores foram abalados, dada a morte do Deus cristão, a desconstrução de um mundo-verdade.

O eterno retorno consiste na ideia de um universo “desdivinizado”, assentado no princípio de um tempo infinito e as forças finitas, inalteráveis e constantes, de modo a não haver força externa que a alimente. Se o tempo é infinito e as forças são finitas, disso decorre que tudo já retornou, uma vez que as forças, em sua condição finita, já se repetiram. O que nos faz crer numa repetição eterna. O mundo não caminha a um estado final porque, se assim o fosse, já teríamos chegado a algum fim na medida em que as forças são finitas.

Com este golpe, Nietzsche pretende destruir as teorias que sustentam um mundo-verdade, alimentado por uma ânsia insaciável por verdade. Ele afirma que não há verdade, e que a verdade que se erguia acima de todos nada mais é do que uma interpretação também.

Nietzsche revela, com sua teoria do eterno retorno, mais uma interpretação desse mundo e nos coloca com a função de analisá-la, tal qual um filólogo. Trabalho esse que nos posicionaria em outra condição diante da existência, condição que superaria o estado de doença da civilização moderna (a décadence), afirmando a vida que nada mais é do que vontade de potência, bem como o mundo e nós também, nada mais que isso.

Ainda que tal perspectiva desenhada por Nietzsche não passe de uma possibilidade, o que já bastaria para alegrar esses poucos espíritos, Nietzsche nos convida a não tomarmos sua filosofia como dogmática e que recusemos a ideia platônica de que só a verdade conduz à virtude. Pelo contrário, ele nos conclama, lá em Além do Bem e do Mal, aforismo 4, a reconhecermos “a inverdade como condição da vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal”.

Dessa maneira, podemos entender a interpretação sobre verdade como um artifício demasiado humano. Este, impossibilitado pela razão, segundo Kant, de alcançar a coisa em si, tem sua forma de pensar o mundo mediado pela língua, de acordo com Fritz Mauthner (1849-1923), que é, se pensarmos nos termos de Vaihinger, um instrumento que faz avançar a ciência, na medida em que não temos condições de conhecer o mundo “mesmo”; de outro modo: a limitação imposta pela razão nos encaminha a uma ficção, porque conhecer o em si do mundo é impossível, o pensamos por categorias e essas são representações metafóricas.

Não nos é possível saber se as forças e matéria que formam o universo são finitas e limitadas, assim como não podemos, de fato, saber se o tempo é infinito, donde se segue que o eterno retorno do mesmo pode ser entendido como uma ficção, ou uma construção de representação, representação essa que é um símbolo e não cópia da realidade, mas sim instrumento com o qual nos orientamos neste mundo com maior facilidade. A maneira como o compreendemos subjetivamente é, pois, uma construção psíquica, conforme a teoria do como se de Vaihinger.

Se pensarmos na proposição do aforismo 4 acima, de Além do Bem e do Mal, e tomarmos a “inverdade como condição da vida” poderíamos aferir que o que se propõe é abandonarmos a fábula fundada na racionalidade do pensamento e linearidade do tempo em favor da ficção (inverdade) como condição de uma vida fadada a repetir-se infinitamente.

Borges no ponto do retorno

Ao tomarmos o eterno retorno como ficção, orientação no mundo de representações, o assumimos como mais uma interpretação da vida que visa ser opção à representação de mundo construído em cima da noção de verdade.

Não sabemos que tudo se repete e tornará a se repetir infinitamente, mas, se agirmos como se assim o fosse, como se não pudéssemos romper essa lógica cruel, totalmente entregue a este fato, a filosofia de Nietzsche aponta para a aceitação dessa condição, desejando-a, de maneira a orientar-se nesse mundo vivendo a eternidade do agora de modo a querer seu incessante retorno.

Em Vaihinger, a ficção é um instrumento do pensamento que fez e faz avançar a ciência e um auxilio à vida no mundo de representações. Todavia, pensamos a ficção em Nietzsche como a interpretação que possibilitaria a transvaloração de todos os valores, rechaçando o mundo como fábula socrática e aceitando-o, não como um vir a ser, mas um ser que retorna sempre o mesmo.

É esta a artéria da filosofia de Nietzsche que Borges soube tão bem captar e fazer dela um de seus temas, cujo exemplo julgamos melhor acabado neste brevíssimo conto “A Trama”, de sua “Antologia Pessoal”, que transcrevemos integralmente:

“Para que seu horror seja perfeito, César, acossado ao pé de uma estátua pelos impacientes punhais de seus amigos, descobre entre os rostos e os aços o de Marco Júnio Bruto, seu protegido, talvez seu filho, e já não se defende, exclamando: ‘Até tu, meu filho!’. Shakespeare e Quevedo recolhem o patético grito.

Ao destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias; dezenove séculos depois, no sul da província de Buenos Aires, um gaúcho é agredido por outros gaúchos e, ao cair, reconhece um afilhado seu e lhe diz com mansa reprovação e lenta surpresa (estas palavras devem ser ouvidas, não lidas): ‘Pero, che!’. Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.

 

Referência

BORGES, J. L. Antologia Pessoal. Tradução de Davi Arrigucci Jr., Heloisa Jahn, Josely Vianna Batista. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

_____. O Aleph. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

_____. Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MAUTHNER, F. Contribuições à critica da linguagem. Tradução de Marcio Suzuki.

NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Seleção e ensaio de G. Lebrun. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: editora 34, 2014.

VAIHINGER, H. A filosofia do como se. Tradução e apresentação de J. Kretschmer. Chapecó: Argos, 2001

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