A busca por autenticidade durante a transição para a idade adulta na obra mais famosa de J. D. Salinger
Sartre já dizia que uma obra só existe quando a vemos, ou seja, não se concretiza sem a presença do leitor. Por isso, quando alguém vai contar a sua história, temos que prestar atenção. Sempre, por um motivo ou por outro, vale a pena. E quanto perderíamos se não lêssemos O Apanhador no campo de centeio (no original The catcher in the rye)! Lenda ou fato, o livro é tão relevante que influenciou Mark Chapman a assassinar John Lennon, em 1980, e, no ano seguinte, o atirador que tentou assassinar Ronald Reagan. Muito criticado na época de seu lançamento devido a uma linguagem até então pouco explorada na literatura, um tanto quanto despojada, Salinger dá voz a um adolescente de dezessete anos que se esforça para narrar algumas passagens importantes de sua trajetória de vida. Dotado de um estilo muito peculiar (linguajar muito próximo da oralidade de um jovem rapaz), solto e por vezes carregado de ironia e sarcasmo, o jovem Holden Caulfield nos faz mergulhar em seu mundo de peripécias em busca do autoconhecimento. Trata-se de uma transição da infância para a idade adulta, essa conturbada fase chamada adolescência.
A história se passa num intervalo de quatro dias, prazo que Holden utiliza para sair da escola e voltar para a casa dos pais. Essa viagem é também simbólica, pois retrata o adentramento no âmago de sua personalidade, os problemas e transtornos pelos quais teve que passar. Mas por que um jovem rico, estudando em uma boa escola particular não consegue se dar bem em nenhum círculo social no qual se insere? O rapaz já tinha sido expulso de outras escolas e tentava adiar o momento de confessar aos pais que era, de fato, um desajustado. Entretanto, como relatar isso a sua mãe, que já havia perdido um filho (um dos irmãos de Holden morrera jovem de leucemia) e provavelmente não aguentaria outro trauma? Ele não conseguia ir bem nas aulas, com exceção de uma disciplina, inglês, na qual ele se considerava um bom aluno. Tinha alguns colegas, mas que não chegavam a ser amigos, pois sempre batia de frente com eles, criticando-os, julgando-os e até mesmo saindo no tapa com eles.
O livro traz à tona alguns temas relevantes, sobretudo se levarmos em consideração o contexto histórico no qual o romance se insere. Estamos nos Estados Unidos na década de 50, um pós-guerra que marca uma virada da sociedade norte-americana, e falar da descoberta da sexualidade e o modo como a sociedade se comporta, sob o olhar de um adolescente alienado (no sentido de não compreender a realidade que o cerca), torna-se pertinente.
O que se percebe é que o jovem Caultfield tem medo de virar adulto. Ele teme viver as responsabilidades que um adulto urbano, por isso sofre de sérios problemas psicológicos. A cena do museu de história natural é emblemática: ele se sente bem ali porque sempre que ele volta tudo está do mesmo jeito, praticamente nada muda. Como se o tempo parasse, é o espaço ideal para se viver, pois a idade adulta nunca chegaria e, consequentemente, os compromissos que vêm no pacote. O jovem encara solitário a existência sem se identificar com quase nada. Para ele, não existe algo na sociedade que valha a pena e, por vezes, o leitor tem a sensação de que algo ruim vai acontecer a qualquer momento. Isso é percebido pela linguagem do narrador. Sempre inconstante e muitas vezes depressivo, ele não se encaixa na sociedade e denuncia a hipocrisia que impera nas relações. Quando ele afirma “as pessoas estão sempre atrapalhando a vida da gente”, não pude deixar de lembrar da célebre frase de Sartre “o inferno são os outros”, surgida no livro Entre quatro paredes, escrito um ano antes do romance do Salinger. O zeitgeist, ou espírito da época, pode explicar uma certa proximidade entre os dois pensadores. Um ser autêntico jamais irá se familiarizar com a falsidade presente nos relacionamentos em uma sociedade. Para ele, até mesmo um aperto de mão seguido de um “prazer em conhecê-lo” pode agredir a sua personalidade, se não for sincero.
Contudo, não há na personagem uma reflexão com o intuito de tentar compreender e melhorar o seu ambiente de convívio, mas apenas a ânsia de criticá-lo e rejeitá-lo. O estranhamento é tamanho que ele não se vê como parte de nenhuma comunidade e não se imagina fazendo nenhum esforço para criar um mundo no qual ele possa viver com um mínimo de dignidade e parentesco. Francamente, eu passei o romance todo achando que ele se mataria, pois a angústia que exalava do narrador-protagonista acabou me afetando enquanto leitor. Eu não via outra solução para ele senão o suicídio e qual não foi a minha surpresa com o final do livro.
Um dos elementos que causam a identificação do leitor com o Holden é o fato de o cara ser um sacana que adora trolar os outros. Ele mente por prazer, dissimuladamente: “Quando eu começo, posso ficar mentindo horas a fio, se me dá vontade. Sem brincadeira. Horas”. Está sempre pregando peças nas pessoas e isso se mistura com os seus momentos depressivos, equilibrando os polos. De fato, o senso de humor do estudante, mesmo com tudo desabando ao seu redor, é irresistível, como podemos perceber nessa passagem: “Comecei novamente a dar em cima das três bruxas da mesa do lado. Quer dizer, da loura. As outras duas só numa ilha deserta. […] Ela era a própria imbecilidade, mas como dançava! Não pude deixar de dar uma espécie de beijo no alto daquela testa de ignorante, bem ali onde repartia o cabelo. Ficou danada”.
Existe também uma crítica ao modo como as pessoas se relacionam com o dinheiro. Holden, mesmo tendo grana, parecia não ligar muito pra isso (talvez justamente por não ter a noção da sua falta), mas entendia o seu valor em uma sociedade capitalista: “Apesar de meio vazio, me deram uma mesa horrível, bem no fundo. Eu devia ter sacudido uma nota no nariz do maître. Em Nova York, a gente fica sabendo que é verdade essa estória de que o dinheiro fala – é sério”.
Como dito anteriormente, o tema da sexualidade é muito importante dentro da obra, pois a personagem central tenta verbalizar os seus traumas, como a perda do seu amor de infância para seu amigo, a quase perda da virgindade para uma prostituta e o nervosismo em não saber lidar com a situação. Imaginem um adolescente de dezesseis anos, de família abastada, saindo com uma prostituta em Nova Iorque na década de 50! Se caísse na boca do povo, seria um escândalo. Nas palavras de Holden, “sexo é um troço que não entendo mesmo. Juro que não entendo”. Além disso, ele passa por uma situação muito delicada quando precisa dormir na casa de um professor, que é casado com uma mulher bem mais velha e rica que ele. No meio da noite, o professor Antolini faz um carinho na cabeça do rapaz, deixando no ar uma possível homossexualidade de ambos. O jovem diz que “aí aconteceu um troço. Não gosto nem de falar no assunto”. A narrativa não esclarece e o próprio narrador não sabe exatamente o que aconteceu. Não se sabe se a carícia do professor foi maliciosa, se Holden gostou do contato ou se ele fantasiou tal aproximação e se assustou com a ideia. O que se sabe é que o estudante levantou assustado do sofá, inventou uma desculpa e foi embora correndo. Realmente, o problema da sexualidade chama atenção na obra, pois é um drama mal resolvido que acaba por influenciar as outras esferas na qual ele (não) se enquadrava.
O título do livro faz menção a um poema de Robert Burns chamado Comin’ Thro’ the Rye. A metáfora me reavivou algumas imagens e fiquei lembrando de uns quadros do Van Gogh, como o Campo de trigo com corvos e O Semeador. Também me veio à mente a cena final do filme Gladiador, em que o protagonista está morrendo e simbolicamente atravessando um campo de trigo. A travessia seria o reencontro com aquilo em que ele acredita, o reequilíbrio com a sua verdade. Holden tinha o íntimo desejo de ser o salvador que apanharia as crianças que brincavam num campo de centeio e que cairiam num “precipício maluco”. Ser “o apanhador no campo de centeio” era a única coisa com a qual ele se identificava, uma projeção metafísica para a autenticidade de seu espírito. Para quem quiser descobrir mais sobre esse universo, em 2014 saiu Memórias de Salinger, um documentário revelando algumas curiosidades sobre o autor e sua obra.
REFERÊNCIAS
SALINGER, J.D. O apanhador no campo de centeio. Tradução de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2016.
SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura. Tradução de Carlos Felipe Moisés. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.