Cadernos de Manuela – Memórias de uma gaúcha #02 – Amanda Pimenta

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O dia hoje está calmo. Lá fora, as estrelas cintilantes dançam ao redor de uma lua cheia, perfeita, encantadora. Olha as formas da lua cheia, sua feição, seus desenhos. Don’Ana sempre dizia que eu possuía um olhar aguçado. A luz prateada que a lua emana é bela, perfeita. Ilumina os pássaros noturnos que vagueiam pela noite.

Hoje, quatro de outubro, faz 68 anos que meu tio, Bento Gonçalves da Silva foi preso no combate da Ilha do Fanfa, durante a Guerra dos Farrapos. Depois desse episódio, ficamos sem o ver durante muito tempo. Esse dia maldito, que me fez perder a minha vida inteira. Diário, vou lhe contar a história:

Quatro de Outubro de 1836. Bento Gonçalves da Silva, o maior revolucionário que nosso povo já viu, lidera mais uma vez uma batalha contra os caramurus. Foi a famosa Batalha do Fanfa. Porém, lá foi preso quando os farroupilhas estavam em desvantagem, e foi mandando para a Corte, e depois encarcerado no Rio de Janeiro. Foi lá, no Rio de Janeiro, dentro da sua cela, que conheceu um estrangeiro que fora exilado de sua terra, e cujo nome era Giuseppe Garibaldi. O meu Giuseppe. E então, depois de lhe contar sobre a guerra que estava ocorrendo no Sul, uma guerra feita para a liberdade de um povo, Giuseppe seguiu para o Rio Grande do Sul. E eu sabia. Sempre soube. Eu o via, em meus sonhos e visões, durante toda a sua viagem. Sabia que cada vez estava mais perto. Porém, não conhecia seu rosto, que se revelou extremamente belo quando se apresentou na casa de Don’Ana. E na hora ele também soube: eu o amava, sem nem ao menos conhecê-lo.

Bueno, tio Bento acabou sendo mandado para um Forte na Bahia, muito longe do Rio Grande, um Forte da onde ninguém nunca havia fugido. Porém, com ajuda de alguns irmãos da maçonaria, ele conseguiu despistar os seguranças do Forte e fugiu. Fugiu para terminar o que havia começado. E, ao chegar na nossa terra, soube que o haviam escolhido presidente. Presidente de um povo. De uma nação.

Tio Bento sempre foi um homem inestimável, corajoso e forte. Porém, não deixava de ser um bom marido para Caetana e um bom pai para seus oito filhos. Oito filhos e filhas, que o amavam. Filhos estes que pelejaram quando precisava, herdando assim o espírito de guerreiro e herói do pai. Filhas estas que tiveram tantos filhos quanto sua mãe, e deixaram para muitas pessoas a honra de ter uma descendência única e honrada. Descendentes estes que vivem por aí, até hoje.

Sinto saudades daqueles tempos. Mas é errado dizer isso. Todos dizem que os tempos bons para guardar nas lembranças e memórias são os tempos de paz. E, naquela época, os tempos não eram de paz. Pessoas morriam e matavam. O sangue vermelho pintava as paisagens dos pampas. As mulheres choravam a perda de seus maridos e filhos. E eu era feliz, por que ao menos tinha Giuseppe. E quando ele se foi, as suas lembranças nítidas me faziam viver. Hoje, as lembranças estão embaçadas. Já as imaginei centenas de formas diferentes, em situações diferentes, de maneiras e diálogos diferentes. Mas a realidade é que nem ao menos me lembro de sua voz, como ela era realmente. Por mais que ele me sussurre todas as noites nos meus sonhos, não me lembro da sua verdadeira voz. Nem do seu jeito de olhar. Nem de suas maneiras. Apenas me lembro de seus olhares, e do gosto de sua boca. Suas mãos tocando em minha cintura, o calor do seu corpo no meu. Apenas isso. Nada mais.

Além do mais, naquela época eu tinha minhas primas e minhas irmãs. Rosário, Perpétua, Mariana. Todas elas tiveram um final feliz. Morreram jovens, porém felizes. E constituíram família. Menos Rosário, que entregou sua vida para viver na eternidade com seu caramuru.

E eu aqui, adentrando cada vez mais na velhice. Na velhice de minha vida, de minh’alma. Em um sobrado em Pelotas, vendo o tempo passar diante de meus olhos. Por isso nunca faço planos para o amanhã, pois pode não existir o amanhã. Por isso vivo minha vida pacata, medíocre e desoladamente. Pois amanhã posso não estar mais entre os vivos. Amanhã posso estar nos braços do meu Giuseppe, em um lugar chamado Eternidade.

Foto Manoella Amalia Ferreira com assinatura

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