Cadernos de Manuela – Memórias de uma gaúcha #03 – Amanda Pimenta

O sol se vai, silencioso, nos confins do ocidente. O céu está inteiramente coberto por infinitas nuvens cor de papel. A cada bater de meu coração, é mais uma dor. Estou envelhecendo cada vez mais depressa. Meu corpo já não consegue me sustentar.

Hoje dormi até tarde, e depois de almoçar na sala de jantar, voltei ao meu quarto para ler meus antigos diários. Li o dia da morte de Dona Antônia. Vou escrever um pedaço:

“Era um dia de sol. Não me recordo a data exatamente. Mas um dia bonito, onde poucas nuvens percorriam os céus, e as aves cantavam. Dona Antônia sempre dizia que não devia de morrer em dias tão belos, como aquele em que ela morreu. No velório compareceram muitos amigos e familiares dos arredores, como Pelotas, Cristal e até mesmo lá de longe, de Porto Alegre. Antes de enterrá-la, dispararam tiros para o alto, em honra àquela que Matias mais amava no mundo. Matias chorava pela perda da avó. Quantas histórias ela não havia contado? Quantas cousas não havia ensinado? Entonces, agora tudo perdido. Ela desaparecera, para sempre.



Bueno, Dona Antônia sempre fora uma mulher dura, com um coração de pedra. Queria sempre o bem de suas filhas, Mariana e Rosário. Porém, Mariana havia se apaixonado pelo bugre que cuidava dos cavalos da estância, e Dona Antônia passou a prendê-la dentro de casa. Mas mesmo assim, ela fugira sempre, para vê-lo. Assim como eu fazia com meu Giuseppe. Porém, ela havia engravidado dele. Quando Dona Antônia soube, ela tentou matar a criança, oferecendo um chá para abortar a criança. Mas Caetana interviu. Assim nascera Matias, filho de João Gutierrez e Mariana. E Dona Antônia passou a amar o pequeno indiozinho, de olhos puxados e pele escura.”

Matias teve um filho, Antônio. Há tempos ele havia me visitado, quando havia herdado a estância de seus pais. Mas depois, quando ele vinha me visitar, não o atendia. E depois de mais de cinco tentativas, ele nunca mais voltou a me ver. Por mais que eu quisesse vê-lo, eu não podia. E se ele se acostumasse com a minha presença? Eu estou velha o bastante, a cada dia tenho menos chances de estar viva.

Fecho o antigo diário e suspiro, longamente. O céu ainda continua cheio de nuvens, e a noite chega. Nenhuma estrela no céu é vista. Nada mais agora me interessa. Nem mesmo aquela chinoca de Anita. Nem mesmo o guapo Garibaldi. Nada. Hoje nem ao menos vi meu vestido branco, que havia feito para o dia em que ele chegasse. Hoje nem ao menos me olhei no espelho. Hoje, como sempre, observei os garotos indo para a escola, e apontarem para mim e rirem, me chamando de louca. Até mesmo esbocei um sorriso para eles. Sei que o dia em que não me verem na janela, saberão que estou morta. E eles poderão até mesmo, algum dia, visitar meu túmulo.

Hoje não sonhei, não calei. Quando tive vontade de gritar, reuni últimas das minhas forças e berrei. Rasguei roupas antigas e as queimei. Se pudesse, colocaria abaixo aquele sobrado no centro de Pelotas. Se pudesse, nadaria o oceano até a Itália, desenterraria meu Garibaldi e o faria abrir os olhos novamente para mim. E se ele não o fizesse, iria me deitar ao seu lado, fecharia os olhos, e esperaria a morte chegar.

E então choveu. Gotas grossas de chuva, para lavar minha alma de todos os meus pecados. Choveu, instantaneamente, para fazer as pessoas que passavam na rua correr em busca de um abrigo. Choveu, para que eu largasse meus diários e fossem para minha cama, talvez para passar lá minhas últimas horas de vida.



Amanda Pimenta
Advogada, concurseira; ex-aspirante à carreira de egiptóloga; headbanger, amante da sétima arte e de idiomas estrangeiros. Enófila entusiasta, leitora voraz e poeta nas horas vagas. Mora atualmente em Curitiba.
Amanda Pimenta
Advogada, concurseira; ex-aspirante à carreira de egiptóloga; headbanger, amante da sétima arte e de idiomas estrangeiros. Enófila entusiasta, leitora voraz e poeta nas horas vagas. Mora atualmente em Curitiba.
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