Caio Fernando Abreu e a imprecisão das palavras

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As possibilidades da linguagem, tendo como exemplo Para uma avenca partindo, de Caio Fernando Abreu.

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“Você não vale nada”, Gravura em fine-art de Rogério Fernandes

A linguagem é rica de sentidos e, como consequência, pobre de entendimentos. Com uma única palavra pode-se fazer referência a uma infinidade de objetos e fenômenos. E como oportuno trocadilho, apresento-lhes o verbete “casa”; sabe-se que a casa concreta de tijolos não é a mesma casa afetiva dos nossos pais nem tampouco a casa natal que aprendemos a chamar de pátria. E toda essa plurissignificação das palavras acaba por resvalar num ledo hábito que a linguagem tem, às vezes, de nos confundir; e para isso basta um pequeno deslize.

Como bom amante das palavras, eu sempre me percebo desconstruindo o que me dizem e o que digo aos outros. Minha cabeça imaginativa leva poucos segundos para entender um “pessoalmente” como um “pessoal mente” ou até mesmo estabelecer construções associativas mais elaboradas como meu micropseudopoema “Vá-te poeta ao bar-do amor”. E se palavras inteiras ou repartidas já geram tamanha confusão, imaginem então frases longas e repletas de mensagens que circulam de emissor a receptor, ganhando ao longo dos diálogos configurações das mais variegadas. Não há limites para o que se diz nem para o que se ouve; e, caso queiram ir mais longe, os limites vão completamente a baixo quando se reconhece que existe ainda uma distância muita extensa entre aquilo que se quer dizer e aquilo que se quer ouvir.

Esses estranhamentos e atropelamentos provocados pela linguagem são ilustrados por Caio Fernando Abreu em Para uma avenca partindo. E não se poderia esperar outra atmosfera textual, já que nossa fala está cheia de vazios que ora terminam em graça e gargalhadas, ora em profundos desentendimentos.

O fragmento é enredado por uma cena de despedida na qual um homem apaixonado tenta se despedir da sua amada antes que o ônibus parta. Ele tenta, de modo relutante, dizer a ela algo que aparenta ser muito importante; porém, faltam-lhe palavras e sobram aos dois possibilidades de compreender o que (não) é dito.

Com uma escrita que exige do leitor uma veia dramática e interpretativa, Caio inicia a agonia e desespero do homem apaixonado da seguinte forma:

– Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende?

Todo o fragmento – que não possui pausas para uma única respiração – se constrói por meio de uma intenção comunicativa que não leva a lugar nenhum; e o mais curioso é que se percebe claramente que aquilo que se quer contar é bastante grandioso, embora não haja palavras para representar tal grandiosidade. No fundo, talvez a transmissão da mensagem apenas seja impossível porque a informação nela contida é por demais grandiosa, não cabendo em palavras.

A insistência e a teimosia, assim como as incompreensões, são bastante evidentes. Quanto mais o homem apaixonado desenhado por Caio insiste no encontro de uma forma de expressão, mais ele se perde nos possíveis caminhos que a ele se apresentam e, logo em seguida, se converterem em herméticos emaranhados.

… eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai ser mais possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é a minha última tentativa… 

Existe uma única (pseudo)pausa no fragmento de Caio Fernando Abreu, porém ela não parece estar lá para que o leitor possa ter um tempo mínimo para respirar, antes o contrário. Num período composto por uma sequência de muitos pontos Caio leva, por fim, todo o fôlego de quem com expectativa acompanha o diálogo de grandes significados e de palavras vazias protagonizado por um homem e uma mulher que descobrem e redescobrem o que é o amor. E o amor para Caio me parece estar, na verdade, lado a lado com as incertezas e hiatos da linguagem.

… sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e, se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?

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